segunda-feira, fevereiro 01, 2016

CRÔNICA DE AMOR POR ELA


CRÔNICA DE AMOR POR ELA

Luiz Alberto Machado

Nada merece mais a nossa gratidão que o ventre materno, seja ela simples dona de casa alagoana ou uma resignada do mosteiro de Argenteuil.

Decerto todos nós passamos pelo canal de parturição, nós, vivos ou mortos, já viajamos nove meses na aeronave do ventre, dependentes da ternura materna até termos a consciência do oxigênio e da vida.

Nada seria interessante se não fosse o poder da concepção que elas carregam no ventre, seja ela secretária executiva de Natal ou trabalhadora de Orange.

Nada é mais admirável que a fecundação quando tudo se faz de prazer atravessando a zona pelúcida para gerar filhos da vida, adubados pelo carinho e a ternura da maternidade, seja de uma simples balconista de Terezina ou aquela de Guaratinguetá de Di Cavalcanti.

Admirável é a sua anatomia, o seu design belo de recipiente do amor e do prazer, seja ela gueixa de Kioto, Aprés le l bain de Degas ou vendedoras de frutas da Martinica. Ou mesmo a de Unamuno no banho, ou costureira do mercado de Abi Djan.

Que seja amada como uma simples rendeira de Aracati, ou mestiça do Gabão; ou tuaregue do Níger; ou ticoqueira da cana-de-açúcar.

Que seja amiga mesmo como camponesa nordestina ou do milharal do Haiti. Ou mesmo uma cachorrona sexy, maluca pauleira, fatal miss ou sedutora perversa.

Que seja malandra, dócil ou abestada, ou quitandeiras do Recife, prostitutas de Brasília ou a executante de alaúde de Caravaggio.

Sempre serão belas mesmo que seja uma simples jovem turca, ou esquimó da Groenlândia ou, mesmo, a Garota de Ipanema.

Sempre serão exuberantes mesmo na simplicidade daquela das colinas de Chittagong em Bangladesh ou aquela lavadeira de Portinari. Ou nativa birmanesa ou aquela marabá de Rodolfo Amoedo. Ou mesmo a colhedora de chá do Ceilão ou uma linda índia Kamayurá. Ou, ainda, Le bain au serail de Theodore Chasseriau.

Pode ser uma humilde tecelã de seda em Bali ou operária de qualquer montadora de São Bernardo do Campo. Ou a nômade Fars, ou humilde verdureira da feira de Caruaru.

Pode ser uma dedicada vendedora de cosméticos de Aracaju ou Nu à contre jour de Bonnard. Ou uma Diana de Lee Falk, ou a Danae de Rembrand.

Pode ser uma teimosa da vida ou Fleurs de la prairie de Maillol ou humilde enfermeira de um hospital de João Pessoa.

Pode ser uma adolescente eterna sonhadora ou a estudante de Anita Malfati ou uma nativa das ilhas Trobriand, ou a Vênus Anaduomene de Ingres ou As Artes de Van Gogh.

Que seja musa dos escritores, poetas e compositores ou mesmo uma perdida nas veredas da vida, ou Vairumati de Gaugin, Vênus de Brozino ou a que carda lã no Nepal.

Seja a Bovary de Balzac ou a dedicada submersa entre marido e filhos. Ou a Nu de Modigliani ou uma passageira de Olinda; seja a mãe de Almada Negreiros, ou de Gorki, ou Valentina de Guiido Crepax.

Seja ela Velta, ou Lôra Burra, a Vênus de Urbino de Ticiano ou Léda Atomique de Salvador Dali; ou femme de frisant de Toulouse-Lautrec; ou uma da cadeira de David Lingare.

Mas também que seja ela Safo, louca, aguerrida ou desgarrada. Que seja uma sumidade intelectual ou muçulmana de Oman, mestiça de Cuenca, mulata do Rio de Janeiro ou mesmo estabanada andrógina da noite na paulicéia desvairada.

Seja mesmo o que for: a “Mulher” de Geraldinho Azevedo & Neila Tavares, ou mesmo “Todas elas juntas num só ser” de Lenine & Carlos Rennó, ou tantas outras grandes e anônimas mulheres deste planeta, aqui só gratidão. Obrigado por existirem. Esta a minha homenagem, MULHER.

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sábado, janeiro 30, 2016

OS ENCANTOS DE VALKIRYA FREYA


Imagens exclusivas do acervo de Valkirya Freya. Direitos reservados.

DUAS LUAS

Cego errante vou na rua
Sem saber adiante. Nem previa
Cambaleante, reincidente
Que me alumias, antes indecente
E arfante, com tuas
Luzidias iridescentes
Duas luas.



SEMINEM IN ORE



Ah, Calíope das horas mais profusas

Tal musa dos lampejos mais ardentes

Vem reverente voz macia e me enternece

Como carece ter-me presa do seu beijo

E eu porejo refém da sua língua buril

Todo febril na tabuleta do meu corpo

Eu fico torto com o seu golpe exato,

O fino trato que desvela a fantasia

Qual felonia é o seu repasto infrene

Se faz perene e a me fazer feliz

Oh felatriz do meu gozo mais solene.



DECÚBITO VENTRAL



És a paisagem da visão transcendental

Uma paragem da mais bela natureza

Toda espalmada em decúbito ventral

E toda esguia a me expor toda pureza.



És meu rincão, a minha posse mais real

A minha língua a percorrer tua extensão,

O teu sabor de fruta boa do quintal

Traz o furor de provocar a polução.



A poesia é tua assimetria corporal,

Faz-me trilhar teus interstícios à margem

Com o brio do contato interfemoral

Eu sigo teus vãos a me dar toda passagem.



Quando te tenho em decúbito ventral

O teu vulcão no Cáucaso apetitoso

Faz-me do cóccix à vertebra cervical

Com indecências de verso indecoroso.



E o meu dedo alisa a fresta labial

Enquanto mordo o teu ombro sem temor

Aprumo a clava num intercurso tão total

Para gozar a gula do teu esplendor.



Luiz Alberto Machado



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sexta-feira, janeiro 29, 2016

SULAMITA, MINHA FILHA

                                                                    Imagem: The Plan (1993), de Jenny Saville.

SULAMITA, MINHA FILHA

Luiz Alberto Machado

Todo sábado a feira livre da cidade ganhava euforia imensa, quando Sulamita aparecia com seu vestido de renda, discreto decote, pernuda, rebolativa, pulcra e com um sorriso a cumprimentar todo mundo dali. Era verdadeiramente um colírio para contrabalançar com a feiúra e o descolorido de tantas coisas ofertadas às vistas, enlameadas, espragatadas, estuporadas, com bugios desdentados e feirantes esdrúxulos aos berros visando chamar a atenção da bela donzela que desfilava impune pelos corredores da feira livre da cidade.

Vinha ela sempre faceira, lábios carnudos, carne suculenta, uma alegria admirável, uma felicidade das grandes.

O seu jeito grácil paralisava todo movimento assim que apontasse na esquina do supermercado em direção das toldas, irradiando saúde, bem aquinhoada nas formas corporais, surgindo com o poder da imantação.

A todos chamava atenção. Vinha livre da prisão do pai, o misterioso e avarento Tertuliano, imposta à sua filha mais bela e mais velha.

A sua magnética feição causava sobressaltos ao se chegar, toda prendada, a catar verduras, escolher frutas, legumes, queijos, hortaliças; aquela mãozinha delicada pesando o feijão, o arroz, os condimentos.

Os marmanjos não dispensavam os mínimos detalhes de sua gesticulação, flagrando sua esfuziante investigação alimentar.

Era um bom dia sonoro e musical ao passar pela tolda de Nanoca, aquela das aves e ovos, na compra de um galeto robusto e fresco, examinando atentamente a sua total nudez quando depenada.

Uma voz maviosa cantarolando uma música transcendental, a música de um anjo.

O seio se delineando no discreto decote, ao se curvar para contar bananas, na frente de Totonho fruteiro, um deus nos acuda! O peitinho duro, moranguinhos sedutores, bons de chupar.

Um sacolejo na cintura fazendo arregalar os olhos do calunga Nhonhô, numa dança vertiginosamente sensual.

Umas coxas recheadas de prazer alimentando a punheta de Tijela, ao vê-la arregaçar a saia de cócoras para conferir a laranja comum e depositá-la na sacola. Tijela se oferecia, na sua doideira, como carregador das compras, gratuitamente, empurrado bruscamente para longe pela fúria do famigerado pai, eternamente vigilante e contrariado com tudo.

Comentavam de como poderia vir ao mundo figura tão cândida como Sulamita, filha de um monstrengo daqueles. Deve de ter puxado à mãe, visto ninguém conhecer a sua genitora, enclausurada em casa. Sabia-se apenas do nome, Dona Tércia, mais nada. Deve de ser também uma megera por se casar com tão trombudo homem.

Um flagrante exclusivo em dirigir seu olhar à cata de algo e com todos os olhos na direção dela, atrapalhando trocos, pesos, contas; desarrumando toldas, barracas, panelas de barro e exposição de camelôs e feirantes; proporcionando a maior confusão em tudo por sua mágica feitura, causando até brigas entre mariolas hipnotizados que se chocavam uns aos outros, causando bulha só por causa do balanço gracioso dela.

Guiomar verdureira não se continha com a besteirada dos velhacos, reclamando ser essa mulher a razão do pecado, um fruto do cão. Era inveja nas mulheres e cobiça nos homens. E quando chegava na outra esquina da saída da Ceasa, deixava um perfume no ar alimentando inúmeros amores platônicos nos macorongos sentimentais dali.

Naquele dia estava sozinha, contudo, sempre aparecia ao lado dela, sempre sisudo, atarracado e aborrecido, o velho Tertuliano, seu pai, um arengueiro e rude agricultor da cana-de-açúcar que, ao longo da vida, conseguira viver de forma modesta, porém autossuficiente. Sulamita era a menina dos seus olhos, desbancando com sua ignorância peculiar toda a nobreza de quem se aproximasse daquele primor de mulher.

Tertuliano transferira a família para a cidade, oriundo do engenho na zona rural, recentemente. Ninguém ainda havia se acostumado sem furor com a presença daquela casta senhorita. E a mudança do campo para a vida urbana trouxera uma placidez com gosto de felicidade naquela mulher, sua mãe, Dona Tércia e dez irmãos, nove deles do sexo feminino. Essa nova moradia dera-lhe mais vitalidade, comprovada pelo brilho imenso dos seus olhos, a boca entreaberta mostrando os dentes branquinhos, o jeito saltitante de enamorada com a vida.

A vinda para a cidade significava que o negócio estava prosperando, a cana em alta, a abastança dos fazendeiros animavam as plantações, mais próximo dos bancos, do comércio e do escritório das usinas. Isso ajudava o pai a alimentar o sonho de se tornar um dos agricultores bem sucedidos da região, a exemplo de seu Maçu Librosa; criando gado do bom feito seu Nandinho Norinhos, seu Rômulo Outeiros; com cavalos mangalarga marchador, quarto de milha, éguas a peso de ouro, garanhões premiados feito Violineiro da Santa Musiquinha, com fazenda e tudo, num plantel de dar inveja. Apesar de rude, ele sabia que um dia chegaria a trocar uns dedos de prosa com os Leruel da Grota, da Usina Serramby; os Danceiros, de Inhambu; os Laureão, de Brumeliana; arrotando riqueza, sentando potentado e fazendo deles seus amigos mais íntimos para influir na política e nos destinos das cidades circunvizinhas. Sua principal vingança era arquitetada contra os funcionários do Banco do Brasil, quando um dia ficasse rico de cagar dinheiro pela culatra, entraria numa agência bancária daquelas e desbancaria o rei que aqueles taizinhos, no dito dele, criavam na barriga. Humilharia aqueles contraproducentes, no adjetivo dele, com seu saldo modesto de vários milhões, ameaçando tirá-los da conta sob a cara que achasse chata nos guichês; rebaixar aqueles gerentezinhos que, segundo seu próprio juízo, gente imprestável e falsa que se ocupam dos cargos das instituições financeiras, ditando sempre como eles deveriam proceder, de que jeito, forma ou prazo, porra nenhuma! O dinheiro é meu, tome no cu e se fôda de uma ladeira abaixo com a boceta da sua mãe junto! Que Tertuliano fosse o maior de todos, paparicado, bajulado e babado por todos aqueles frutiqueiros de merda.

Sulamita, apesar da idade, ainda brincava com as suas bonecas de pano. Uma inocência angelical, privada das ruas.

O velho só permitia que as filhas saíssem para a escola a fim de educação, mais nada. O resto era em casa, dias e noites. Não se permitia nem ver televisão para não pegar mau costume, apenas um radinho de pilha para iluminar seus sonhos de ser, um dia, visitada pelo príncipe encantado.

Tertuliano, por sua vez, possuía uma vida muito regrada e cheia de turbulentos transtornos.

Dona Tércia era uma verdadeira dona de casa, escravizada e sempre à sua mercê.

As dez filhas: Sulamita, de 24; Silvia, de 23; Severa, de 22; Sinfrônia, de 21; Sinara, 19; Sibele, 17; Simone, 16; Sandra, 15; Sabrina, 14; e Soraia, 12; pareciam mais um rico pastoril e faziam uma escadinha de procriação, sem contar com Sávio, único filho macho de apenas vinte anos de idade, todos trancafiados a sete chaves dentro de casa, para que ninguém deitasse vista e desejasse as suas serviçais, numa verdadeira escravaria.

As meninas dormiam amontoadas em dois quartos, Sávio no sótão.

Algumas ajudavam Dona Tércia nos afazeres de casa. As outras, numa risadagem sem fim, amolegando suas bonecas o dia todo.

Quando o velho chegava era um silêncio funéreo dentro de casa. Ninguém ousava nem um cochicho.

No café da manhã o velho exigia sob rigorosa recomendação e cumprida em cima da risca tudo que partisse do seu mando, a presença de todas as filhas sentadas à mesa, com Dona Tércia e Sávio servindo de garçons ao capricho dele.

O bruto possuía um prazer satânico de ver as filhas arengando por causa de comida, uma vez que ele sozinho se fartava das carnes, deixando para todos apenas arroz, feijão, farinha, cuscuz, ou outras iguarias. Era um desejo latente de ver aquelas danadas discutindo, puxando o cabelo uma das outras, seminuas, a se embolar no chão, intimidades à mostra, o fruto do seu desejo. E quando a luta alcançava um teor mais áspero, ele se engalfinhava entre elas como numa brincadeira, apartando-as e apalpando aqui e ali, algumas protuberâncias carnais, não permitindo que ninguém intercedesse naquilo. Gostava de ver, se deleitava com isso.

No almoço e na janta a coisa se repetia.

De todas, a Sulamita era a mais reservada, engolindo seco a comida e sem participar das contendas que as irmãs já se acostumavam em digladiar.

Quando caía a noite, a charque era só dele; aos demais, farinha, arroz, farofa, feijão, macaxeira e inhame, numa verdadeira austeridade. Quem quisesse provar da charque tinha de lutar e ser a preferida dele. No meio da arenga, ele escolhia uma para sentar-se no colo, permitindo que saboreasse das guloseimas. Era um plano diabólico para levantar a ciumeira das outras que agora brigavam para ser a escolhida no dia seguinte. Mordiam-se umas às outras, apostando, de quando em vez, qual seria a escolhida para a fartura na ceia seguinte.

Noutro dia, terminada a ceia, se apossou da escolhida e levou-a para o quarto, ordenando a mulher que fosse ter com as outras, a prosear, visto que ele queria descansar em paz, sem barulho, nem tormentos, trovejando, sobremaneira, que ninguém deveria incomodá-lo na digestão sob hipótese alguma. Dito isto, se trancara nos aposentos, escondendo a chave. Do lado de fora, ninguém ouvia nada. Todos curiosos pela escolha do velho naquele dia. Foi a Sinara.

No dia seguinte, ceia exposta, consumida, escolheu Sinfrônia. E assim por diante, todo dia uma escolhida. Ele ofertava comida e depois se trancava no quarto com uma das filhas. Dona Tércia até fora proibida de entrar no quarto. Na primeira reclamação da mãe ele vitimou-a de um sacolejo grande que ficou adoentada por três dias, acamada. Sávio sentiu-se ferido e foi em defesa da genitora, levou uma espoletada enfezada de ficar zonzo por uns oito dias, sem saber nem quem era.

O que se passava dentro do quarto deixava a filha escolhida com um olhar lacrimoso. Algumas esperneavam, ouvindo-se apenas os seus gritos.

Dona Tércia ousou nova reclamação dos maus procedimentos dele, desconfiando de alguma coisa, já que ele agora dormira com uma de suas próprias filhas. Ele deu-lhe uma tremenda surra para não se meter mais nos assuntos que só a ele diziam respeito.

Uma tarde, porém, ela constatara a veracidade de sua desconfiança, chorou agarrada às suas filhas, um choro longo, solidário. O que se poderia fazer contra um monstro daquele? Não tinha iniciativa, viviam sob as leis dele, não tinham opinião, não sabiam de si, muito menos; sabiam apenas cumprir os seus mandos, a sua vontade, o seu desvario. O poder dele anulava a personalidade de todos, uns resignados sem força para lutar, restando-lhes, apenas, as lágrimas, mais nada.

Não demorou muito Tertuliano expulsar a figura materna de casa por causa das intervenções intrometedoras que ela fazia, surpreendendo-o no ato sexual com uma de suas filhas. Dera-lhe ele um pontapé na bunda, largada na rua embaixo dos mais cabeludos palavrões, sentenciada a não mais retornar àquele sagrado lar dele.

Ninguém mais soubera notícias dela. Com sua saída, impusera ele um juramento às filhas de obediência e fidelidade absoluta às suas ordens.

Sulamita, em sua graciosidade, agora, reinava ali por ser a mais velha. E a insatisfação morava no coração daquelas jovens e Silvana foi logo a primeira a arribar de casa com um namorado arrumado às pressas, numa terça-feira, ao inventar a compra de um medicamento na farmácia. A fuga encolerizara o pai que saiu numa bruta busca na tentativa de resgatá-la. Mais aborrecido com o insucesso da empreitada, desferiu umas lapadas violentas no Sávio, sob a alegação de que ele se tratava de um irresponsável incapaz de vigiar suas irmãs. O menino ficou molezinho, pagando o pato ali mesmo, na frente de todas. Após a reprimenda, Sávio trancou-se por vários dias no sótão.

A atitude grosseira se estendera a todas as filhas que dormiram com o bumbum ardendo, excetuando-se Sulamita, a mais obediente e protegida pelo pai. Não se livrando ela de um safanão nas fuças na hora de esquentar os pés do velho, por ter permitido a fuga da irmã.

Três dias depois veio a fuga de Suzana sob a proposta de comprar pão na padaria. Esgueirou-se mundo afora.

Mais oito dias, outra. E assim por diante, restando apenas ao domínio dele a Sulamita e o Sávio, mais medrosos que obedientes.

O asqueroso pai aborrecido com a inoperância do filho em coibir a debandada das irmãs, resolveu dar-lhes um castigo, castigo diferente, cheio de carinhos, de alisados, e de aguardente. O rapaz todo desconfiado com as gentilezas do brutamonte, foi se deixando embriagar até que num puxão violento, foi nocauteado e, de uma só investida, foi seviciado pelo ignorante.

Sulamita presenciara tudo. Amargurou-se mais, crescia algo dentro dela que não sabia expressar. Era uma coisa ruim. Pensou em se apossar de uma faca e matar o pai enquanto ele enrabava o irmão aos gritos. Vacilou, temia que o pai se virasse dali contra ela. E depois de se vingar do Sávio, puxou-a pelos cabelos e, arrastando-a corredor adentro, trancou-se com ela no banheiro. O deplorável estava, naquela noite, insaciável.

No dia seguinte a manhã chegara com a notícia do desaparecimento do filho.

A coisa foi piorando, o homem só saía agora de casa depois que amarrasse a única que restava, a correntes e cadeados, proibida de botar o focinho na janela e amordaçada para não gritar por ajuda quando ele não estivesse por ali. Inerte, ela chorava o dia inteiro, não havia como fugir.

A noite se instalara e com ela a chegada de Tertuliano fedendo a álcool, ela esfomeada, desde cedo da manhã, na mesma posição, toda dormente e já arrastada para a sedução ali mesmo. Depois desamarrava tudo com palavras e atitudes de carinhos, se saciando novamente com selvageria. Agora era uma violência brutal devido desconfiança que ela tencionasse também arribar.

Os anos se passando e Sulamita se recolhendo em horrores, buscando uma maneira de lhe diminuir os dissabores, embora todas as tentativas infrutíferas, em vão.

Todo dia ele mais ampliava a sua câmara de horrores, seduzindo-a com ameaças, esfregões, de arma esfregada no nariz, cusparada no rosto e brutalidade infinita.

Toda manhã ela chorava com a lembrança de cada cena, um sacrifício que jamais teria fim.

Certa feita, de súbito ele entrara pela sala adentro, esbaforido, amargurado com o engenho, a cana com baixo teor de sacarose, o saldo comprometido no banco, o gado doente, o alazão que morrera, reclamando de tudo, não conseguira financiamento no banco e, decepcionado, resolvera se banhar.

Pela primeira vez ele não desamarrara Sulamita nem lhe atentara com sua sede sexual.

Revoltado porque a usina pagara mais barato pela tonelada de sua cana, reclamou a noite inteira.

Os vizinhos abelhudos já enchiam o saco dele com perguntas bisbilhoteiras a respeito dos familiares. Abofelava os ossos cada vez que uma fofoqueira dos estranhos indagando sua vida e a dos seus, produzindo com isso um recolhimento compulsório e mais cedo. Não interessava a ninguém a vida particular dele que se fodessem com suas perguntas insolentes. Resmungava, e muito!

Sem falar mais nada, saiu do banho e desamarrou-a, depois, serviu-se dela.

Satisfeito, sentou-se à mesa para jantar enquanto alisava as pernas e os seios da filha.

Durante a ingerência da comida notou que estava ainda queimando de desejo e nem descansou direito, agarrou-se a ela, sussurrando safadezas, cochichando carícias, beijando-lhe o corpo todo e se armando para o ato sexual.

Investiu sobre as carnes preferidas e gozou uma, duas três, quatro vezes, incansavelmente.

Admirado de si próprio, o pênis virado com a porra, nada de ficar mole, duro, teso, renovou as investidas, expelia sangue e nada do cacete baixar.

Começou a dizer besteira, falar maravilhas daquele corpo, desejos, delírios, miragens, investindo novamente, sentiu dores, afastou-se da fêmea, arrastou-se no chão, caralho roxo, inchado, doendo, se contorcendo, gritos no ar, embolando, exasperando, estrebuchando, aos gritos, palavrões, olhos revirando, o suor lavando o corpo até não poder mais resistir.

Sulamita, ajeitando as vestes, fitava a tudo sem dizer uma palavra, olhos esbugalhados, assustada com a dor dele, sem ter o que fazer, viu-lhe o último suspiro.

Com a zoada os vizinhos acorreram presenciando a mudez de Sulamita, desgrenhada no canto da sala, segurando o vestido entre as mãos envolvendo as pernas, enquanto o pai, bocarra aberta, mãos no pênis, se arrastando aos gritos roucos pelo chão. Último suspiro. Calada estava, calada ficou.

Após o sepultamento do pai, Sulamita fora encaminhada pela bondade alheia a um sanatório do Recife.

© Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.