quinta-feira, janeiro 28, 2016

ELVIRA, A DEBUTANTE DO CORONEL





ELVIRA, A DEBUTANTE DO CORONEL



Luiz Alberto Machado



Menina dos olhos de todos os olhares. Assim era Elvira, sempre linda: órfã aos doze, faceira de infância, adolescente ríspida e linda. Ah, Elvira, o desassossego dos meninos.



Parecia triste no olhar. Uma meiguice escondida, vulnerável da vida. Futuro promissor? Linda e bem apanhada. Da vida, a cilada.



O primeiro infortúnio varrendo a primeira esperança: finaram seus pais. Um acidente trágico na rodovia federal. Sobrara apenas lembrança triste, mais nada.



Aos cuidados da avó, seu único amparo. A anciã sofria de enfermidade rara. No coração. Cuidados redobrados dela que, apesar da insinuada rebeldia, sempre fizera por compreensiva e obediente. Comiserada para ser mais que o chalé, as meias nas sandálias, o casaco do frio e a tremedeira da esclerose. Carecia, então, de mais cuidados que dela mesma. Isso ela sabia e perseguia, pactuando na carne e nos sonhos o seu compromisso: nada faria para desagradá-la, nunca!



Dos espinhos, a flor reinando, a segunda cilada.



Debutante e linda. Acnes na franzinice charmosa. Maturranga. Quando não, sem papas na língua. De nada adiantara.



Entre a legião de marmanjos aloprados, eis Manildo Abatimtimbaí Jacubá, coronel ricaço, perito em descabaçador de donzelas. Todo pavoneado para as suas bandas.



Do alarde, todos sabiam: é aí que mora o perigo. Por certo, Elvira não escaparia de sua sanha. Nem pôde. Bastou uma festa numa casa amiga, para a segunda cilada laçá-la. Foi no aniversário da anfitriã. Lá o coronel montou banca: vistas para lá de gulosas sobre a menina. Lambendo os beiços, azuretado. Todos flagraram a agourenta paquera do traste velho. Sim, porque muitas contavam do coronel. Fizeram a caveira dele em cochichos aos ouvidos de todos. (Diziam da muita dele, coisas até que formaram um lendário rico ao seu redor. E nem aliviavam arreando a lenha, isso às escondidas, todos morriam de medo).



Quem, então, o algoz? Um escroque rico de um carneiro berrante preso numa corrente: carneiro branco com uma estrela brilhante na testa. E mais: bocório de jeito espaventoso. Chaboqueiro de aventuras galantes que vendera a alma ao diabo. Leviandades muitas, contrafações hábeis nas suas orelhas de abano. Mais: um frei Tomás, santarrão solto na gandaíce com mulheraças desabridas. (E quantos pormenores foram levantados na poeira de sua vida nebulosa).



Do alto de suas posses, uma procissão alheia de solteironas, descasadas, comprometidas e mal-amadas. Mas era luxento mesmo, era. Biqueiro, o cabaço da donzela era o seu troféu. Escolhia a dedo, não antes dar uma sarrabulhada empenada na priquita de qualquer que caísse nas suas graças. Viesse não, era sabugo dentro.



Valia-se do Galeoto, seu fiel amigo e consolo na solidão. E até as mães, muitas e muitas mães, levavam suas filhas virgens para banqueteá-lo. Tudo em troca de alguma modesta fortuna.



O assédio dele, Elvira repulsava. Pressão total. Por todos os flancos arrotava gentilezas e ela não. Mesuras e gracejos, não. Mas Manildo Jacubá não perde viagem, não bate prego sem estopa. Destá, preparava ardis no tempo. Ela nem quis saber.



Na inocente festa, a arapuca. O pavão cercou-lhe junto de todos os olhares de língua solta. O cerco se fechava. Venderiam maledicências à avó. Tudo mentira, armação.



Elvira empinou nariz e esperneou: não era o que pensavam. Já era tarde, mas ocultou de sua avó as persistentes investidas dele. E recusou tudo desde a hora que nasceu. Empalideceu na viela e não teve outra: não sou parente e nem é meu aniversário! Não senhor, não aceito de maneira nenhuma. Não, não e não! Pronto.



A avó não perdoaria enxerimentos com ninguém. Muito menos com. Rigorosa como era, toda fiel às crenças e virtudes, por certo, estaria com uma reprimenda pronta para colocar no lugar todas as coisas que julgasse contrária a sua religiosidade. Isso tendo um veredicto para a desgraça da moça inocente.



Nessa sinuca, Elvira varou noites sem sossegar o sono. Não conciliava nada, pois que seria condenada, cuspida, arrastada pela humilhação. Permanecia mais que encucada e não conseguia pregar os olhos. E com isso, vieram os pesadelos com o escárnio dos mais próximos, o preconceito dos longínquos, a presepada que lhe daria a alcunha de puta sem nem ser tocada por qualquer mancebo na vida. Tinha certeza que já estava condenada antes de tudo, o coronel não se cansaria de tê-la entre as suas posses. Estava na ordem do dia, na primeira linha da primeira página da agenda dele, era evidente que não arredaria pé por nada. No cúmulo da cilada: se correr, o bicho pega; se ficar, o tinhoso come. Encruzilhada com semáforo no sinal vermelho em todas as direções. Era. Um papa figo que sugaria todo o seu sangue, paparia todos os seus órgãos e deixá-la-ia exangue como Inez de Castro depois da coroa de espinhos.



De sobressalto em sobressalto, ela desejava que ele sumisse pros quintos dos infernos dali pra dentro de cabeça pra baixo plantando bananeira e que não estaria disposta a atender-lhe as bajulações safadas, muito menos era uma descarada que precisasse pedir-lhe qualquer favor vez que não era puta nem tinha vontade de ser.



Longe dela de servir de troféu para as conquistas baratas de um sujo energúmeno como ele e que botasse o rabinho entre as pernas que ela não cederia de forma alguma aos seus galanteios. Foi assim mesmo no meio dos resmungos do seu gênio agastadiço.



Ah, bicho tinhoso sabe amansar bicho brabo encantado, desentortar aço inoxidável sem tocá-lo, mudar a rotação e a translação da terra só para passear pelo universo.



Elvira partiu para dar um ponto final em tudo: sustou convites, estornou presentes, mandou socar no cu toda aquela baboseira, que tivesse respeito por ela que era uma moça prendada e não era nenhumazinha encontrada com a boca aberta pronta para ser desalmada por um sujeito tão bandoleiro como ele e que não serviria de cobaia para uma aventura nojenta, inescrupulosa com um sanguessuga bastardo feito ele, acostumado a enrolar as bestinhas que pensam com príncipe encantado e ele só metendo ferro nas intimidades delas, mais nada, que convidasse a mãe dele de bunda de fora e fosse para o raio que o partisse.



Todo arrazoado inútil. Mandingas e conselhos alheios levaram-na inescrupulosamente aos domínios dele. A avó nem sonhava com isso.



Engoliu seco e enfrentou tudo. Já davam por certa golpeira de baú. Mentira, mas estigmatizara.



Desapontada, deu-se por fuso perdido. Chorou e chorou com toda aquela parafernália de insinuações que lhe acusavam sem ao menos respeitarem sua conduta, nem mesmo sua participação pela existência de um ser humano como outro qualquer, pobre e digna, dona do seu próprio nariz, levada para uma armadilha perspicaz, uma arapuca premeditada, um redemoinho sem salvação.



Desconsolada no seu pranto, fez como avestruz: enfiou a cabeça na sua própria escuridão pensando haver se desvencilhado do perigo. Qual nada. O chão fugiu-lhe, estava despencando num labirinto cósmico. E a avó? Ela julgaria aquilo como uma lúbrica situação dolosa e a única culpada seria ela, Elvira mesma, mais ninguém, andar dando trela para homens, sem-vergonha, não quisesse não fosse, pronto, tudo estaria resolvido.



Desamparada via que sua avó aplicaria razões múltiplas para condená-la, alegando fraqueza de personalidade, cafajestagem, sonsa libidinagem, predestinada à puta e merecendo ser apedrejada em praça pública.



Desprotegida gritou e relutou juntando todas as forças. Nada adiantou: a caça arrastada para um quarto suntuoso sob o banho de arroz, arrancando sua calcinha à força e num safanão restou estendida na cama. Saia jogada escancarando o sexo e as pernas, aos puxavanques viu-se rasgada em bandas.



Elvira repulsou tudo quanto pôde, esperneando, gritando, lutando por se desvencilhar daquilo enquanto choramingava doídamente.



Indiferente aos seus gritos e repulsa, ele apenas cravava seu membro rude na vagina dela violentamente e cavalgava ao bel prazer como numa égua quarto de milha.



A dor dela, a rudeza, a indignação: criou coragem e mirou a cara dele enquanto arfava enfiando-lhe o caralho com raiva.



Vira a cara do monstro e que ele fitava a si mesmo pelo espelho na cabeça da cama, enquanto lerdeava selvagemente suas necessidades. Era como se ele testemunhasse no olhar a sua vitória, sua conquista, o seu troféu.



Vira o monstro peludo e suarento. O asco envolveu sua alma, tocou-lhe no profundo âmago. O que fizera? Não havia como recusar, estava vencida, sem forças para nada. Aniquilada. Aquilo fora a maior violência que havia conhecido. Nunca pensara que houvesse algo parecido no mundo.



As suas lágrimas torrenciais lavavam a cama e ele mais pulava em cima dela, roubava-lhe as últimas energias, tomava-lhe a alma, o seu próprio eu. Quem era? Ninguém. A solidão do ser, a inexistência de vida.



E ele a revirava de costas, trotando enlouquecido, enfiava-se por todo o seu corpo, vagina, ânus, seios, lambuzava-a toda carne, esbofeteava as faces, agarrava-lhe pelos cabelos e tornava a se aproveitar: chupa, puta, chupa!



Saboreou ali o fiasco da sua existência no reino daquele paquiderme. Beirava, faltando pouco, para se dizimar na sua própria morte.



Concluído o coito, ele deitou-se pesado em cima dela, fitando a si próprio no espelho por demorado tempo.



Elvira engulhava como que com nojo. Ela era um bicho para ele, não era gente. Uma prenda, uma posse, uma coisa.



Depois ele se foi. Ela deitada, desencontrada, melada em sangue, uma nódoa em sua mente, uma poça enorme em seu coração. Ficara em encalistrado recanto enquanto o diabo esfregava um olho.



Sozinha. Nenhuma força nas pernas, nem nelas nem em nada. Só consumida, vilipendiada, seviciada.



Reunindo forças, levantou-se e seguiu até ao toalete da suíte. Demorou-se com a água do chuveiro a devolver-lhe qualquer vitalidade. O poder da água. A restauração da vontade de sentir viva no meio de selvagens, uma morta viva.



Enquanto a água molhava seu corpo, alisava o seu sexo dolorido. Apertou-se com as duas mãos. E depois ficou a alisar as suas próprias coxas, pernas, ventre, rosto, lábios. Perdeu a noção de si. Enojada daquilo tudo, levantou-se lentamente. Deu-lhe uma abulia toda aquela situação. Passos inseguros, os seus. Recolheu-se no quarto envidraçado. A solidão fazia a sua parte.



À noite tudo recomeçava e ouvira a chegada dele pelo alarido dos gansos como os do capitólio. Estava deitada apenas na sua exclusiva mixórdia. Ele invadia o recinto sem palavra alguma, apenas aquele pisado de mando, aquela marcha funérea. Tudo era temeroso, ninguém possuía a palavra. O silêncio mandava com a sua chegada. Aliás, o silêncio validava a tristeza, a dor, o medo, a imponência de quem manda, a verdade de quem tem sobre quem não tem nada.



Abriu-se a porta do quarto e no afã de satisfazer-se ele atacou-lhe novamente. Do mesmo jeito. Sem consideração, sem valia de nada. Dias e mais dias assim.



Ao cabo de um mês exigira dele que falasse com ela, enfrentando-o, aquele baluquitério atual cheio de mudez, que trocasse palavras, assuntos quaisquer, ele dava-lhe as costas. Até que ela aquela cunhã que espezinhava clamando por sua companhia, enquanto ele um mastodonte que lhe trouxera para mão como uma vespa atraída pelo suor.



Pensara, então, no fosso entre a sua idade e a dele. Ela uma marruá na vida, ele um marupiara.



Começou por se esquivar de seus carinhos ariscos. Bebeu umas doses e ficou grogue. Apresentou-se perante ele ridiculamente vestida e enfeitada em demasia. Acusou-lhe de tratante, traste de merda. Sabia que ele perpetuava o costume antigo dos teutônicos: depois das bodas uma horrível lua-de-mel. Sabia de tudo e obtivera de antemão todas as coisas ruins que dele proviria. Mas, passara batida e se estrepara. Um combustível na sua cólera.



A partir disso, em protesto, fazia suas refeições sentada no chão, abandonada, doída. Quando teve oportunidade acocorou-se e fez a micção ali mesmo, o mijo escorrendo pela sala. Disse-lhe que estava com diuria. Nem aí. Ela enfrentou-o. Ele pegou de uma moeda e esfregou na sua venta. Cuspiu-lhe a cara. Coisa tão aviltante, tão ultrajante, injuriosa. Feriu seu pundonor. Haveria dignidade ainda? Era um pugilato desigual. Viva ou esteja. Cadê a terra embaixo dos pés? Esgrimia contra tudo e todos. Faria pirraças, em troco.



- Seu milhafre!



A voz ecoava em seus nervos, acendia sua raiva e enervava sua postura. Aquilo não ficaria assim, jurava. Jurava dias e noites sem fim enquanto sentia sua intimidade destroçada por um caralhudo desalmado. Estava presa, coerções múltiplas visando impedir-lhe as vontades.



Um mês, dois, seis, um ano ali, sem ver vivalma. Escrava.



Depois disso a ameaça de ficar no caritó, ninguém mais proporia casar-se com ela. E agora? Fazia abstinência e padecia diuturnamente. Tudo colidindo com o seu orgulho, sua maturescência. Conflitos. Ela ignorava a vingança dele e ficou na sua abstração. Não era mais a mesma, tinha de haver uma reviravolta na sua vida. Pode ser que a coisa mude, algumas vezes assim dá certo. Nada mais tinha haver o seu passado com o futuro agora. Toma tempo.



Perscrutou de tudo, de venta inchada, Deus lhe falou na alma. Ela ia maturescendo a pulso, cismada. Bem que ela ainda não era amojada e em pleno viço mostrava-se um tigre de mão torta. Tinha de escoimar seu passado, perquirindo todo seu trâmite vital.



Passou a manter uma distância geodésica dele e foi acometida por uma depressão nervosa. Bote mais tempo. Durou uma eternidade tudo isso.



Certa manhã ele exigiu sua presença no café da manhã. Por mais amável falso que sempre fora com ela, estava naquela hora no seu dia de calundu. Deu para notar logo que coisa boa dali não sairia nunca.



Sentou-se à mesa e ouviu-lhe falar pela primeira vez.



- Acabou!



Nada mais disse e partiu. Ela ficou sem saber o que fazer. Vestiu-se com esmero e saiu. Dali, Elvira enfurnou-se nos pesadelos, o seu sisifismo, a sua apocatástase.




© Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.