ELVIRA, A
DEBUTANTE DO CORONEL
Luiz Alberto
Machado
Menina dos olhos de todos os
olhares. Assim era Elvira, sempre linda: órfã aos
doze, faceira de infância, adolescente ríspida e linda. Ah, Elvira, o
desassossego dos meninos.
Parecia triste no olhar. Uma
meiguice escondida, vulnerável da vida. Futuro promissor? Linda e bem apanhada.
Da vida, a cilada.
O primeiro infortúnio varrendo a
primeira esperança: finaram seus pais. Um acidente trágico na rodovia federal.
Sobrara apenas lembrança triste, mais nada.
Aos cuidados da avó, seu único
amparo. A anciã sofria de enfermidade rara. No coração. Cuidados redobrados
dela que, apesar da insinuada rebeldia, sempre fizera por compreensiva e
obediente. Comiserada para ser mais que o chalé, as meias nas sandálias, o
casaco do frio e a tremedeira da esclerose. Carecia, então, de mais cuidados que
dela mesma. Isso ela sabia e perseguia, pactuando na carne e nos sonhos o seu
compromisso: nada faria para desagradá-la, nunca!
Dos espinhos, a flor reinando, a
segunda cilada.
Debutante e linda. Acnes na
franzinice charmosa. Maturranga. Quando não, sem papas na língua. De nada
adiantara.
Entre a legião de marmanjos
aloprados, eis Manildo Abatimtimbaí Jacubá, coronel ricaço, perito em
descabaçador de donzelas. Todo pavoneado para as suas bandas.
Do alarde, todos sabiam: é aí que
mora o perigo. Por certo, Elvira não escaparia de sua sanha. Nem pôde. Bastou
uma festa numa casa amiga, para a segunda cilada laçá-la. Foi no aniversário da
anfitriã. Lá o coronel montou banca: vistas para lá de gulosas sobre a menina.
Lambendo os beiços, azuretado. Todos flagraram a agourenta paquera do traste
velho. Sim, porque muitas contavam do coronel. Fizeram a caveira dele em
cochichos aos ouvidos de todos. (Diziam da muita dele, coisas até que formaram
um lendário rico ao seu redor. E nem aliviavam arreando a lenha, isso às
escondidas, todos morriam de medo).
Quem, então, o algoz? Um escroque
rico de um carneiro berrante preso numa corrente: carneiro branco com uma
estrela brilhante na testa. E mais: bocório de jeito espaventoso. Chaboqueiro
de aventuras galantes que vendera a alma ao diabo. Leviandades muitas,
contrafações hábeis nas suas orelhas de abano. Mais: um frei Tomás, santarrão
solto na gandaíce com mulheraças desabridas. (E quantos pormenores foram
levantados na poeira de sua vida nebulosa).
Do alto de suas posses, uma
procissão alheia de solteironas, descasadas, comprometidas e mal-amadas. Mas
era luxento mesmo, era. Biqueiro, o cabaço da donzela era o seu troféu.
Escolhia a dedo, não antes dar uma sarrabulhada empenada na priquita de
qualquer que caísse nas suas graças. Viesse não, era sabugo dentro.
Valia-se do Galeoto, seu fiel amigo
e consolo na solidão. E até as mães, muitas e muitas mães, levavam suas filhas
virgens para banqueteá-lo. Tudo em troca de alguma modesta fortuna.
O assédio dele, Elvira repulsava.
Pressão total. Por todos os flancos arrotava gentilezas e ela não. Mesuras e
gracejos, não. Mas Manildo Jacubá não perde viagem, não bate prego sem estopa.
Destá, preparava ardis no tempo. Ela nem quis saber.
Na inocente festa, a arapuca. O pavão
cercou-lhe junto de todos os olhares de língua solta. O cerco se fechava.
Venderiam maledicências à avó. Tudo mentira, armação.
Elvira empinou nariz e esperneou:
não era o que pensavam. Já era tarde, mas ocultou de sua avó as persistentes
investidas dele. E recusou tudo desde a hora que nasceu. Empalideceu na viela e
não teve outra: não sou parente e nem é meu aniversário! Não senhor, não aceito
de maneira nenhuma. Não, não e não! Pronto.
A avó não perdoaria enxerimentos com
ninguém. Muito menos com. Rigorosa como era, toda fiel às crenças e virtudes,
por certo, estaria com uma reprimenda pronta para colocar no lugar todas as
coisas que julgasse contrária a sua religiosidade. Isso tendo um veredicto para
a desgraça da moça inocente.
Nessa sinuca, Elvira varou noites
sem sossegar o sono. Não conciliava nada, pois que seria condenada, cuspida,
arrastada pela humilhação. Permanecia mais que encucada e não conseguia pregar
os olhos. E com isso, vieram os pesadelos com o escárnio dos mais próximos, o
preconceito dos longínquos, a presepada que lhe daria a alcunha de puta sem nem
ser tocada por qualquer mancebo na vida. Tinha certeza que já estava condenada
antes de tudo, o coronel não se cansaria de tê-la entre as suas posses. Estava
na ordem do dia, na primeira linha da primeira página da agenda dele, era
evidente que não arredaria pé por nada. No cúmulo da cilada: se correr, o bicho
pega; se ficar, o tinhoso come. Encruzilhada com semáforo no sinal vermelho em
todas as direções. Era. Um papa figo que sugaria todo o seu sangue, paparia
todos os seus órgãos e deixá-la-ia exangue como Inez de Castro depois da coroa
de espinhos.
De sobressalto em sobressalto, ela
desejava que ele sumisse pros quintos dos infernos dali pra dentro de cabeça pra
baixo plantando bananeira e que não estaria disposta a atender-lhe as
bajulações safadas, muito menos era uma descarada que precisasse pedir-lhe
qualquer favor vez que não era puta nem tinha vontade de ser.
Longe dela de servir de troféu para
as conquistas baratas de um sujo energúmeno como ele e que botasse o rabinho
entre as pernas que ela não cederia de forma alguma aos seus galanteios. Foi
assim mesmo no meio dos resmungos do seu gênio agastadiço.
Ah, bicho tinhoso sabe amansar bicho
brabo encantado, desentortar aço inoxidável sem tocá-lo, mudar a rotação e a
translação da terra só para passear pelo universo.
Elvira partiu para dar um ponto
final em tudo: sustou convites, estornou presentes, mandou socar no cu toda
aquela baboseira, que tivesse respeito por ela que era uma moça prendada e não
era nenhumazinha encontrada com a boca aberta pronta para ser desalmada por um
sujeito tão bandoleiro como ele e que não serviria de cobaia para uma aventura
nojenta, inescrupulosa com um sanguessuga bastardo feito ele, acostumado a
enrolar as bestinhas que pensam com príncipe encantado e ele só metendo ferro
nas intimidades delas, mais nada, que convidasse a mãe dele de bunda de fora e
fosse para o raio que o partisse.
Todo arrazoado inútil. Mandingas e
conselhos alheios levaram-na inescrupulosamente aos domínios dele. A avó nem
sonhava com isso.
Engoliu seco e enfrentou tudo. Já
davam por certa golpeira de baú. Mentira, mas estigmatizara.
Desapontada, deu-se por fuso
perdido. Chorou e chorou com toda aquela parafernália de insinuações que lhe
acusavam sem ao menos respeitarem sua conduta, nem mesmo sua participação pela
existência de um ser humano como outro qualquer, pobre e digna, dona do seu
próprio nariz, levada para uma armadilha perspicaz, uma arapuca premeditada, um
redemoinho sem salvação.
Desconsolada no seu pranto, fez como
avestruz: enfiou a cabeça na sua própria escuridão pensando haver se
desvencilhado do perigo. Qual nada. O chão fugiu-lhe, estava despencando num
labirinto cósmico. E a avó? Ela julgaria aquilo como uma lúbrica situação
dolosa e a única culpada seria ela, Elvira mesma, mais ninguém, andar dando
trela para homens, sem-vergonha, não quisesse não fosse, pronto, tudo estaria
resolvido.
Desamparada via que sua avó
aplicaria razões múltiplas para condená-la, alegando fraqueza de personalidade,
cafajestagem, sonsa libidinagem, predestinada à puta e merecendo ser apedrejada
em praça pública.
Desprotegida gritou e relutou
juntando todas as forças. Nada adiantou: a caça arrastada para um quarto suntuoso
sob o banho de arroz, arrancando sua calcinha à força e num safanão restou
estendida na cama. Saia jogada escancarando o sexo e as pernas, aos puxavanques
viu-se rasgada em bandas.
Elvira repulsou tudo quanto pôde,
esperneando, gritando, lutando por se desvencilhar daquilo enquanto
choramingava doídamente.
Indiferente aos seus gritos e
repulsa, ele apenas cravava seu membro rude na vagina dela violentamente e
cavalgava ao bel prazer como numa égua quarto de milha.
A dor dela, a rudeza, a indignação:
criou coragem e mirou a cara dele enquanto arfava enfiando-lhe o caralho com
raiva.
Vira a cara do monstro e que ele
fitava a si mesmo pelo espelho na cabeça da cama, enquanto lerdeava
selvagemente suas necessidades. Era como se ele testemunhasse no olhar a sua
vitória, sua conquista, o seu troféu.
Vira o monstro peludo e suarento. O
asco envolveu sua alma, tocou-lhe no profundo âmago. O que fizera? Não havia
como recusar, estava vencida, sem forças para nada. Aniquilada. Aquilo fora a
maior violência que havia conhecido. Nunca pensara que houvesse algo parecido
no mundo.
As suas lágrimas torrenciais lavavam
a cama e ele mais pulava em cima dela, roubava-lhe as últimas energias,
tomava-lhe a alma, o seu próprio eu. Quem era? Ninguém. A solidão do ser, a
inexistência de vida.
E ele a revirava de costas, trotando
enlouquecido, enfiava-se por todo o seu corpo, vagina, ânus, seios, lambuzava-a
toda carne, esbofeteava as faces, agarrava-lhe pelos cabelos e tornava a se
aproveitar: chupa, puta, chupa!
Saboreou ali o fiasco da sua
existência no reino daquele paquiderme. Beirava, faltando pouco, para se
dizimar na sua própria morte.
Concluído o coito, ele deitou-se
pesado em cima dela, fitando a si próprio no espelho por demorado tempo.
Elvira engulhava como que com nojo.
Ela era um bicho para ele, não era gente. Uma prenda, uma posse, uma coisa.
Depois ele se foi. Ela deitada,
desencontrada, melada em sangue, uma nódoa em sua mente, uma poça enorme em seu
coração. Ficara em encalistrado recanto enquanto o diabo esfregava um olho.
Sozinha. Nenhuma força nas pernas,
nem nelas nem em nada. Só
consumida, vilipendiada, seviciada.
Reunindo forças, levantou-se e
seguiu até ao toalete da suíte. Demorou-se com a água do chuveiro a
devolver-lhe qualquer vitalidade. O poder da água. A restauração da vontade de
sentir viva no meio de selvagens, uma morta viva.
Enquanto a água molhava seu corpo,
alisava o seu sexo dolorido. Apertou-se com as duas mãos. E depois ficou a
alisar as suas próprias coxas, pernas, ventre, rosto, lábios. Perdeu a noção de
si. Enojada daquilo tudo, levantou-se lentamente. Deu-lhe uma abulia toda
aquela situação. Passos inseguros, os seus. Recolheu-se no quarto envidraçado.
A solidão fazia a sua parte.
À noite tudo recomeçava e ouvira a chegada
dele pelo alarido dos gansos como os do capitólio. Estava deitada apenas na sua
exclusiva mixórdia. Ele invadia o recinto sem palavra alguma, apenas aquele
pisado de mando, aquela marcha funérea. Tudo era temeroso, ninguém possuía a
palavra. O silêncio mandava com a sua chegada. Aliás, o silêncio validava a
tristeza, a dor, o medo, a imponência de quem manda, a verdade de quem tem
sobre quem não tem nada.
Abriu-se a porta do quarto e no afã
de satisfazer-se ele atacou-lhe novamente. Do mesmo jeito. Sem consideração,
sem valia de nada. Dias e mais dias assim.
Ao cabo de um mês exigira dele que
falasse com ela, enfrentando-o, aquele baluquitério atual cheio de mudez, que
trocasse palavras, assuntos quaisquer, ele dava-lhe as costas. Até que ela aquela
cunhã que espezinhava clamando por sua companhia, enquanto ele um mastodonte
que lhe trouxera para mão como uma vespa atraída pelo suor.
Pensara, então, no fosso entre a sua
idade e a dele. Ela uma marruá na vida, ele um marupiara.
Começou por se esquivar de seus
carinhos ariscos. Bebeu umas doses e ficou grogue. Apresentou-se perante ele
ridiculamente vestida e enfeitada em demasia. Acusou-lhe
de tratante, traste de merda. Sabia que ele perpetuava o costume antigo dos
teutônicos: depois das bodas uma horrível lua-de-mel. Sabia de tudo e obtivera
de antemão todas as coisas ruins que dele proviria. Mas, passara batida e se
estrepara. Um combustível na sua cólera.
A partir disso, em protesto, fazia
suas refeições sentada no chão, abandonada, doída. Quando teve oportunidade
acocorou-se e fez a micção ali mesmo, o mijo escorrendo pela sala. Disse-lhe
que estava com diuria. Nem aí. Ela enfrentou-o. Ele pegou de uma moeda e
esfregou na sua venta. Cuspiu-lhe a cara. Coisa tão aviltante, tão ultrajante,
injuriosa. Feriu seu pundonor. Haveria dignidade ainda? Era um pugilato
desigual. Viva ou esteja. Cadê a terra embaixo dos pés? Esgrimia contra tudo e
todos. Faria pirraças, em troco.
- Seu milhafre!
A voz ecoava em seus nervos, acendia
sua raiva e enervava sua postura. Aquilo não ficaria assim, jurava. Jurava dias
e noites sem fim enquanto sentia sua intimidade destroçada por um caralhudo
desalmado. Estava presa, coerções múltiplas visando impedir-lhe as vontades.
Um mês, dois, seis, um ano ali, sem
ver vivalma. Escrava.
Depois disso a ameaça de ficar no
caritó, ninguém mais proporia casar-se com ela. E agora? Fazia abstinência e
padecia diuturnamente. Tudo colidindo com o seu orgulho, sua maturescência.
Conflitos. Ela ignorava a vingança dele e ficou na sua abstração. Não era mais
a mesma, tinha de haver uma reviravolta na sua vida. Pode ser que a coisa mude,
algumas vezes assim dá certo. Nada mais tinha haver o seu passado com o futuro
agora. Toma tempo.
Perscrutou de tudo, de venta inchada,
Deus lhe falou na alma. Ela ia maturescendo a pulso, cismada. Bem que ela ainda
não era amojada e em pleno viço mostrava-se um tigre de mão torta. Tinha de
escoimar seu passado, perquirindo todo seu trâmite vital.
Passou a manter uma distância
geodésica dele e foi acometida por uma depressão nervosa. Bote mais tempo.
Durou uma eternidade tudo isso.
Certa manhã ele exigiu sua presença
no café da manhã. Por mais amável falso que sempre fora com ela, estava naquela
hora no seu dia de calundu. Deu para notar logo que coisa boa dali não sairia
nunca.
Sentou-se à mesa e ouviu-lhe falar
pela primeira vez.
- Acabou!
Nada mais disse e partiu. Ela ficou
sem saber o que fazer. Vestiu-se com esmero e saiu. Dali, Elvira enfurnou-se
nos pesadelos, o seu sisifismo, a sua apocatástase.
© Luiz Alberto Machado. Veja mais aqui.