quinta-feira, janeiro 08, 2009

SILVA ALVARENGA



Imagem: Actaea, the Nymph of the Shore, c.1868, do pintor e escultor do Romantismo Vitoriano inglês, Lord Frederic Leighton

OS FRAGMENTOS DA GLAURA DE SILVA ALVARENGA

MADRIGAL

I

Suave fonte pura,
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti dos seus olhos a ternura;
Ela já te procura;
Ah! como vem formosa e sem desgosto!
Não lhe pintes o rosto:
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade,
Meu terno amor, minha infeliz saudade.

III

Voai, suspiros tristes;
Dizei à bela Glaura o que eu padeço,
Dizei o que em mim vistes,
Que choro, que me abraso, que esmoreço.
Levai em roxas flores convertidos
Lagrimosos gemidos que me ouvistes:
Voai, suspiros tristes;
Levai minha saudade;
E, se amor ou piedade vos mereço,
Dizei à bela Glaura o que eu padeço.

XV

No ramo da mangueira venturosa
Triste emblema de amor gravei um dia,
E às Dríades saudoso oferecia
Os brandos lírios, e a purpúrea rosa.
Então Glaura mimosa
Chega do verde tronco ao doce abrigo...
Encontra-se comigo...
Perturbada suspira, e cobre o rosto.
Entre esperança e gosto
Deixo lírios, e rosas... deito tudo;
Mas ela foge (Ó Céus!) e eu fico mudo.

XXIV

Não desprezes, ó Glaura, entre estas flores,
Com que os prados matiza a bela Flora,
O Jambo, que os Amores
Colheram ao surgir a branca aurora.
A Dríade suspira, geme e chora
Aflita e desgraçada.
Ela foi despojada... os ais lhe escuto...
Verás neste tributo,
Que por sorte feliz nasceu primeiro,
Ou fruto que roubou da rosa o cheiro,
Ou rosa transformada em doce fruto.

À LUA

Como vens tão vagarosa,
Oh formosa e branca lua!
Vem co'a tua luz serena
Minha pena consolar!
Geme, oh! céus, mangueira antiga,
Ao mover-se o rouco vento,
E renova o meu tormento
Que me obriga a suspirar!
Entre pálidos desmaios
Me achará teu rosto lindo
Que se eleva refletindo
Puros raios sobre o mar.

Madrigal LIII [Tu és no campo, ó Rosa,]

Tu és no campo, ó Rosa,
A flor de mais beleza
De quantas produziu a Natureza
Que em tuas perfeições foi cuidadosa.
E se Glaura formosa
No seio dos prazeres te procura,
Qual outra flor será de mais ventura,
Ou mais digna de amor ou mais mimosa?
Tu és no campo, ó Rosa,
A flor de mais ventura e mais beleza
De quantas produziu a Natureza.

Madrigal XVIII [Suave Agosto as verdes laranjeiras]

Suave Agosto as verdes laranjeiras
Vem feliz matizar de brancas flores,
Que, abrindo as leves asas lisonjeiras,
Já Zéfiro respira entre os Pastores
Nova esperança alenta os meus ardores
Nos braços da ternura.
Ó dias de ventura,
Glaura vereis à sombra das mangueiras!
Suave Agosto as verdes laranjeiras
Co'a turba dos Amores
Vem feliz matizar de brancas flores.

A SERPENTE

Verde Cedro, verde arbusto,
Que o meu susto e prazer vistes,
Vamos tristes na memória
Essa história renovar.
Este o vale, é esta a fonte:
Glaura achei aqui dormindo:
Sonha alegre e se está rindo,
E eu defronte a suspirar.
Junto dela pavoroso,
Vi, oh Céus! Monstro enrolado,
Fero, enorme, atroz, manchado,
E escamoso cintilar.
Verde Cedro, verde arbusto,
Que o meu susto e prazer vistes,
Vamos tristes na memória
Essa história renovar.
Ardo, e tremo, e louco amante
Mil horrores n’alma pinto:
Vou... receio... ah que me sinto
Vacilante desmaiar.
Vence Amor (doce ternura!):
Tomo a Ninfa nos meus braços:
Ele aperta os novos laços,
E assegura o triunfar.
Verde Cedro, verde arbusto,
Que o meu susto e prazer vistes,
Vamos tristes na memória
Essa história renovar.
Em si mesma se embaraça
A serpente enfurecida;
Ergue o colo e atrevida
Ameaça a terra e o ar.
Numa pedra rude e feia
Já lhe envio a morte afoita;
Já co’a cauda o tronco açoita,
Morde a areia ao expirar.
Verde Cedro, verde arbusto,
Que o meu susto e prazer vistes,
Vamos tristes na memória
Essa história renovar.
Venturoso e satisfeito,
"Glaura bela (então dizia),
Vê de amor e de alegria
O meu peito palpitar".
Ela, em mim buscando arrimo,
Coroa, e diz inda assustada:
"Esse puro ardor me agrada",
Eu te estimo e te hei de amar".
Verde Cedro, verde arbusto,
Que o meu susto e prazer vistes,
Vamos tristes na memória
Essa história renovar.
(Rondó V).

Neste áspero rochedo,
A quem imitas, Glaura sempre dura,
Gravo o triste segredo
Dum amor extremoso e sem ventura.
Os faunos da espessura
Com sentimento agreste
Aqui meu nome cubram de cipreste;
Ornem o teu as ninfas amorosas
De goivos, de jasmins, lírios e rosas.

Suave fonte pura,
Que desces murmurando sobre a areia,
Eu sei que a linda Glaura se recreia
Vendo em ti de seus olhos a ternura:
Ela já te procura;
Ah! como vem formosa, e sem desgosto!
Não lhe pintes o rosto:
Pinta-lhe, ó clara fonte, por piedade,
Meu terno amor, minha infeliz saudade.

No ramo da mangueira venturosa
Triste emblema de amor gravei um dia,
E às dríades saudoso oferecia
Os brandos lírios e a purpúrea rosa.
Então Glaura mimosa
Chega do verde tronco ao doce abrigo ...
Encontra-se comigo ...
Perturbada suspira, e cobre o rosto.
Entre esperança e gosto,
deixo lírios e rosas ... deixo tudo;
Mas ela foge (ó céus!) e eu fico mudo.

Capada laranjeira, onde os amores
Viram passar de agosto os dias belos,
Então de brancas flores
Adornaste risonha os seus cabelos.
A fortuna propícia aos teus desvelos
Anuncia feliz novos favores:
Glaura torna; ah! conserva lisonjeira,
Copada laranjeira, por tributos,
Na rama verde-escura os áureos frutos.

Ó sono fugitivo,
De vermelhas papoulas coroado,
Torna, torna amoroso, e compassivo
A consolar um triste, e desgraçado,
Gemendo nesta gruta recostado,
Sinto mortal desgosto;
Não vejo mais que o rosto descorado
Da saudade, e da mágoa, com que vivo;
Ó sono fugitivo,
Torna, torna amoroso, e suspirado
A consolar um triste, e desgraçado.

Crescei, mimosas flores,
Adornai a verdura deste prado.
Já zéfiro aparece entre os Amores
Risonho e sossegado:
Da amável Primavera o doce agrado
Novo prazer inspira às Graças belas:
Verei brincar entre elas
A Ninfa mais cruel nos seus rigores.
Crescei, mimosas flores,
Fugiu o Inverno triste, e congelado;
Adornai a verdura deste prado:

Ó águas dos meus olhos desgraçados,
Parai que não se abranda o meu tormento:
De que serve o lamento
Se Glaura já não vive? Ai, duros Fados!
Ai, míseros cuidados!
Que vos prometem minhas mágoas? águas,
Águas! . " responde a gruta,
E a ninfa que me escuta nestes prados!
Ó águas de meus olhos desgraçados,
Correi, correi; que na saudosa lida
Bem pouco há de durar tão triste vida.

O AMANTE SATISFEITO - Rondó XXVI

Canto alegre nesta gruta,
E me escuta o vale e o monte:
Se na fonte Glaura vejo,
Não desejo mais prazer.

Este rio sossegado,
Que das margens se enamora,
Vê co'as lágrimas da Aurora
Bosque e prado florescer.

Puro Zéfiro amoroso
Abre as asas lisonjeiras,
E entre as folhas das mangueiras
Vai saudoso adormecer.

Canto alegre nesta gruta,
E me escuta o vale e o monte:
Se na fonte Glaura vejo,
Não desejo mais prazer.

Novos sons o Fauno ouvindo
Destro move o pé felpudo:
Cauteloso, agreste e mudo
Vem saindo por me ver.

Quanto vale uma capela
De jasmins, lírios e rosas,
Que co'as Dríades mimosas
Glaura bela foi colher!

Canto alegre nesta gruta,
E me escuta o vale e o monte.
Se na fonte Glaura vejo,
Não desejo mais prazer.

Receou tristes agoiros
A inocência abandonada;
E aqui veio retirada
Seus tesoiros esconder.

O mortal, que em si não cabe,
Busque a paz de clima em clima;
Que os seus dons no campo estima,
Quem os sabe conhecer.

Canto alegre nesta gruta,
E me escuta o vale e o monte:
Se na fonte Glaura vejo,
Não desejo mais prazer.

Os metais adore o mundo;
Ame as pedras, com que sonha,
Do feliz Jequitinhonha,
Que em seu fundo as viu nascer.

Eu contente nestas brenhas
Amo Glaura e amo a lira,
Onde terno amor suspira,
Que estas penhas faz gemer.

Canto alegre nesta gruta,
E me escuta o vale e o monte:
Se na fonte Glaura vejo,
Não desejo mais prazer.

O BEIJA-FLOR - Rondó VII

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Neste bosque alegre e rindo
Sou amante afortunado;
E desejo ser mudado
No mais lindo Beija-flor.

Todo o corpo num instante
Se atenua, exala e perde:
É já de oiro, prata e verde
A brilhante e nova cor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Vejo as penas e a figura,
Provo as asas, dando giros;
Acompanham-me os suspiros,
E a ternura do Pastor.

E num vôo feliz ave
Chego intrépido até onde
Riso e pérolas esconde
O suave e puro Amor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Toco o néctar precioso,
Que a mortais não se permite;
É o insulto sem limite,
Mas ditoso o meu ardor;

Já me chamas atrevido,
Já me prendes no regaço:
Não me assusta o terno laço,
É fingido o meu temor.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

Se disfarças os meus erros,
E me soltas por piedade,
Não estimo a liberdade,
Busco os ferros por favor.

Não me julgues inocente,
Nem abrandes meu castigo;
Que sou bárbaro inimigo,
Insolente e roubador.

Deixo, ó Glaura, a triste lida
Submergida em doce calma;
E a minha alma ao bem se entrega,
Que lhe nega o teu rigor.

O RIO -- Rondó XLIX

Chora o Rio entre arvoredos,
Nos penedos recostado:
Chora o prado, chora o monte,
Chora a fonte, a praia, o mar.

Vêm as Graças lagrimosas,
E os Amores sem ventura
Nesta fria sepultura
Pranto e rosas derramar.

Por ti, Glaura, a Natureza
Se cobriu de mágoa e luto:
Quanto vejo, quanto escuto
É tristeza, e é pesar.

Chora o Rio entre arvoredos,
Nos penedos recostado:
Chora o prado, chora o monte,
Chora a fonte, a praia, o mar.

A escondida, áspera furna
Deixam sátiros agrestes,
E de lúgubres ciprestes
Vem a urna circular.

Vêm saudades, vêm delírios,
Vem a dor, vem o desgosto
Com os cabelos sobre o rosto
Murta e lírios espalhar.

Chora o Rio entre arvoredos,
Nos penedos recostado:
Chora o prado, chora o monte,
Chora a fonte, a praia, o mar.

Nestes ramos flébil aura
Triste voa e presa gira:
Glaura aqui, e ali suspira,
Torna Glaura a suspirar.

Eco, as Dríades magoa,
O saudoso nome ouvindo;
E na gruta repetindo,
Glaura soa e geme o ar.

Chora o Rio entre arvoredos,
Nos penedos recostado:
Chora o prado, chora o monte,
Chora a fonte, a praia, o mar.

Glaura ó Morte enfurecida,
Expirou... que crueldade!
E pudeste sem piedade
Sua vida arrebatar?

Cai a noite, a névoa grossa
Turba os Céus com manto escuro;
E eu aflito em vão procuro
Quem me possa consolar.

Chora o Rio entre arvoredos,
Nos penedos recostado:
Chora o prado, chora o monte,
Chora a fonte, a praia, o mar.

SILVA ALVARENGA - Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749 - 1814) nasceu em Vila Rica. Estudou no Rio de Janeiro e em Coimbra. Era um ardoroso defensor de Pombal e das idéias iluministas. Sua obra Glaura (1799). Pelos dados biográficos de Manuel Inácio da Silva Alvarenga se pode depreender que sua vida fluiu em parte em função das duas tendências ideológicas atuantes ao seu tempo. Como poeta, entretanto, foi ele obediente seguidor da tradição. Sua poesia lírica consubstanciada num livro apenas, Glaura, é quase um permanente esforço de subordinação a formas e temas consagrados, num preciosismo de quem requinta em obter algo de algo já esgotado e decadente. Todas as suas peças líricas de sua Glaura são em numero de cinqüenta e nove rondós e cinqüenta e sete madrigais. O rondó, forma poética medieval francesa, tem sua notabilidade em Guillaume de Machaut, Eustache Deschamps, Charles d´Orleans, devendo, originalmente, ser destinado ao anto e consistindo de tres estrofes, com um total de doze a quatorze versos, com duas rimas recorrentes. Variando o numero de versos e o esquema das rimas, o verdadeiro apoio fonético que em breve o caracteriza passou a ser a repetição do primeiro verso ao fim da segunda e terceira estrofres do rondó. Variação subseqüente, que se pode chamar rondel, consistiu em repetir, em numero maior de versos, o primeiro verso pela altura do oitavo ou de um dos seguintes versos e no fim do poema. Os rondós de Silva Alvarenga representam um fim de evolução da forma, como estrutura sensivelmente diferente. Consistem, quase todos, em quatro grupos de tres quadras, sendo repetida a primeira quadra, em forma de estribilho, no inicio de cada grupo assim como no fim do poema – o que totaliza, por conseguinte, treze quadras ou cinqüenta e dois versos. O verso, na grande maioria dos rondós, é heptassilabo, redondilha maior, salvo os do rondó que são pentassilabos redondilhas menores, e os rondós hexassilabos. Os heptassibilabos são, quase sem discrepância, acentuados na terceira e sétima silabas. Os pentassilabos, na segunda e quinta, e os hexassilabos, na segunda e sexta. O madrigal, originalmente italiano, confunde-se com a silva espanhola, praticada em língua portuguesa, consistindo de uma pequena serie de versos decassílabos e hexassilabos, em seqüência qualquer, rimando entre si sem esquema prévio de rimas.
Em Glaura - Poemas eróticos (1799), Silva Alvarenga soube criar uma sonoridade leve e cantante, animada por um sentimentalismo difuso, entre dengoso e lamuriante, que iria derramar-se, em clave mais adocicada, em muitas cantigas do nosso cancioneiro popular. Ao mesmo tempo, a imaginação plástica de Silva Alvarenga captou vivamente aspectos da natureza carioca, abrindo espaço para um sentimento da paisagem que os românticos depois iriam aprofundar. Por tudo isso, Glaura constitui um episódio fundamental do arcadismo brasileiro.
Os rondós são formas poemáticas que, como a balada, estão relacionadas com a dança, sendo de origem francesa, foi convertido por Silva Alvarenga em um conjunto de quadras com um estribilho que abre e fecha a composição se dispondo sempre como rimas internas, além de se intercalar entre séries de duas estrofes. A obra Glaura é composta por 59 rondós e de 56 madrigais. Nos rondós o autor utiliza versos curtos, sendo hábil na expressão da clareza dos sentimentos e na exploração do estrato fônico dos poemas, bem como a perfeição do ritmo e da rima, inclusive internas, que revela o sentido primitivo do rondó que traz a idéia de circularidade : rondeau (do latim, rotundu(m), "redondo, em forma de roda"),e, pelo que se sabe, o rondó foi feito para ser cantado ou para servir de acompanhamento de uma dança chamada ronde. Os rondós, sempre em redondilha, começam com poucas exceções, por um quarteto que serve de estribilho, com rimas encadeadas. Segue-se dois quartetos.
Os madrigais de origem italiana são composições poéticas engenhosas e galantes dirigida as damas, porém mais livre, articulando-se em estrofes variamente rimadas, que vão de 8 a 11 versos. Como na tradição italiana dessa forma, notamos a alternância de versos decassílabos, maiores, com versos hexassílabos, menores, atribuindo maior variedade rítmica. Os madrigais, constroem-se um pouco ao sabor da improvisação, guardadas sempre as medidas do verso heróico de dez ou sei sílabas.
Silva Alvarenga como músico e também descendente de músico, soube enriquecer com facilidade suas obras com grande musicalidade, assim podemos observar no madrigal de número XXVI "Vês, Ninfa, em alva escuma o pego irado", o ar festivo ao celebrar o amor com simplicidade das palavras e com seqüência ligeira dos versosdos quartetos é sempre a mesma, e aguda.

FONTE:
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GUIA DE POESIA