sábado, janeiro 17, 2009
GREGORIO DE MATOS GUERRA
Imagem: Purity, do pintor italiano de Giuseppe Dangelico Pino.
A POESIA ERÓTICA DE GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
ÂNGELA
Anjo no nome, Angélica na cara.
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
em quem, senão em vós se uniformara?
Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?
Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda,
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
NECESSIDADES FORÇOSAS DA NATUREZA HUMANA
Descarto-me da tronga, que me chupa,
Corro por um conchego todo o mapa,
O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa até a garupa.
Busco uma freira, que me desemtupa
A via, que o desuso às vezes tapa,
Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,
Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.
Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
E na hora de ver repleta a tripa,
Darei por quem mo vase toda Europa?
Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,
Ou faz da mão sua cachopa.
POESIA AMOROSA - A uma freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou “pica-flor”
Se pica-flor me chamais,
Pica-flor aceito ser,
Mas resta agora saber,
Se no nome, que me dais,
Meteis a flor, que guardais
No passarinho melhor!
Se me dais este favor,
Sendo só de mim o Pica,
E o mais vosso, claro fica, que fico então Pica-flor.
SONETO
Rubi, concha de perlas peregrina,
Animado cristal, viva escarlata,
Duas safiras sobre lisa prata,
Ouro encrespado sobre prata fina.
Este o rostinho é de Caterina;
E porque docemente obriga, e mata,
Não livra o ser divina em ser ingrata,
E raio a raio os corações fumina.
Viu Fábio uma tarde transportado
Bebendo admirações, e galhardias,
A quem já tanto amor levantou aras:
Disse igualmente amante, e magoado:
Ah muchacha gentil, que tal serias,
Se sendo tão formosa não cagaras!
AOS VÍCIOS
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.
E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em pletro diferente.
De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.
Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire e não lamente?
Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto,
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.
O néscio, o ignorante, o inexperto,
Que não elege o bom, nem mau reprova,
Por tudo passa deslumbrado e incerto.
E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem, e o mal vituperado,
A tudo faz focinho, e nada aprova.
Diz logo prudentaço e repousado:
- Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.
Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?
Se souberas falar, também falaras,
Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.
A ignorância dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.
Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não - por não ter dentes.
Quantos há que os telhados têm vidrosos,
e deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?
Uma só natureza nos foi dada;
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou, e esse de nada.
Todos somos ruins, todos perversos,
Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.
Quem maior a tiver, do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chitom, e haja saúde.
FINGE QUE DEFENDE A HONRA DA CIDADE E APONTO OS VICIOS DE SEUS MORADORES
Uma cidade tão nobre, uma gente tão honrada
veja-se um dia louvada
desde o mais rico ao mais pobre:
cada pessoa o seu cobre, mas se o diabo me atiça,
que indo a fazer-lhe justiça algum saia a justiçar,
não me poderão negar que por direito,
e por Lei esta é a justiça, que manda El-Rei.
O Fidalgo de solar se dá por envergonhado
de um tostão pedir prestado
para o ventre sustentar:
diz que antes o quer furtar por manter a negra honra,
que passar pela desonra de que lhe neguem talvez;
mas se o virdes nas galés com honras de Vice-Rei,
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A Donzela embiocada mal trajada, e mal comida,
antes quer na sua vida ter saia, que ser honrada:
à pública amancebada por manter a negra honrinha,
e se lho sabe a vizinha e lho ouve a clerezia,
dão com ela na enxovia e paga a pena da lei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A Viúva autorizada, que não possui um vintém,
porque o Marido de bem deixou a casa empenhada:
ali vai a fradalhada, qual formiga em correição,
dizendo que à casa vão manter a honra da casa;
se a virdes arder em brasa, que ardeu a honra entendei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
Se virdes um Dom Abade sobre o púlpito cioso,
não lhe chameis religioso,
chamai-lhe embora de frade:
e se o tal paternidade rouba as rendas do convento
para acudir ao sustento da puta, como da peita,
com que livra da suspeita do Geral, do Viso-Rei:
esta é a justiça, que manda El-Rei.
A UMA DAMA
Dama cruel, quem quer que vós sejais,
Que não quero por hora descobrir-vos,
Dai-me licença agora para argüir-vos,
Pois para amar-vos sempre ma negais:
Por que razão de ingrata vos prezais,
Não me pagando o zelo de servir-vos?
Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais.
Não há cousa mais feia na verdade:
Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará, o que é fealdade?
Depois, que sois ingrata me parece,
Que hoje é torpeza o que era então beldade,
Que é flor a ingratidão que em flor fenece.
DEFINIÇÃO DE AMOR (ROMANCE)
Nada disto é, nem se ignora,
Que o Amor é fogo, e bem era
Tivesse por berço as chamas
Se é raio nas aparências.
Este se chama Monarca,
Ou semideus se nomeia
Cujo céu são esperanças,
Cujo inferno são ausências.
Um Rei, que mares domina, um mundo que sopeia,
Sem mais tesouro que um arco,
Sem mais arma que uma seta,
O arco talvez de pipa,
A seta talvez de esteira,
Despido como um maroto, cego como uma topeira.
Arre lá com tal amor!
Isto é amor? É quimera,
Que faz de um homem prudente
Converter-se logo em besta.
Uma bofia, uma mentira,
Chamar-lhe ei mais depressa,
Fogo selvagem nas bolsas,
E uma sarna nas moedas.
É este, o que chupa, e tira
Vida, saúde e fazenda.
E se hemos falar a verdade
É hoje o Amor desta era
Tudo uma bebedice.
Que se acaba co dormir
E co dormir se começa.
O Amor é finalmente
Um embaraço de pernas,
Uma união de barrigas,
Um breve tremor de artérias,
Uma confusão de bocas,
Uma batalha de veias,
Um rebuliço de ancas,
Quem diz outra coisa é besta.
II
Ardor em firme coração nascido;
pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionados;
Quando cristal, em chamas derretido.
SONETO - A Certa Personagem Desvanecida
Um Soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vai também desta maneira;
Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetihos mutio brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabondo-vos a vós, eu fico um rei.
Nesta vida um soneto já ditei;
Se desta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que eu o acabei.
GREGORIO DE MATOS GUERRA - Gregório de Matos Guerra (1623-1696) é, para muitos, o verdadeiro iniciador da literatura brasileira. Como um dos primeiros poetas brasileiros, sua obra sobreviveu manuscrita sendo a confrontação das duas grandes contradições surpreendidas no lírico e no satírico, voltado para a critica e a agressão ferina, às vezes de autolamentação, aos costumes, hábitos e individualidades de sua época, compondo um retrato amplo de Salvador da segunda metade do séc. XVII, inclusive do Recôncavo Baiano, onde se desenvolvia a economia do açúcar. Também sua obra é vista como uma manifestação da época, objetiva e documental, exaltando o amor carnal e platônico, destacando-se na sua poesia a beleza das mulheres. Seu estilo variado, desde satírico, lírico, amoroso e religioso demonstra a tradição da poesia quinhentista portuguesa, de Camões, mais a influencia preponderante do Barroco espanhol com Lope de Veja e Quevedo. Sua sátira em versos cortantes atinge grandes e pequenos, e acaba sendo perseguido e destituído de suas funções de vigário-geral e tesoureiro-mor, nomeações que havia conseguido através de D. Gaspar Barata. Sua fama, inicialmente foi de caráter local, com a obra inédita ou espalhada por inúmeras publicações, inclusive alguns poemas sem assinatura. Segundo Assis Brasil, tido como canalha ou gênio, o Boca do Inferno é responsável pelo primeiro momento alto da poesia brasileira, praticamente na época de sua origem e formação. Um barroco por excelência, segundo os críticos, quer na poesia lírica ou religiosa, sendo a sua obra de temas pendulares, como o amor platônico e devasso, o pecado e a pureza, a boemia e o moralismo. Critico mordaz da sociedade, foi reconhecido pelo padre Antonio Vieira, que fez paralelo entre os seus Sermões e a Sátira de Gregório de Matos, como instrumentos de critica. Segundo Ronald de Carvalho, foi Gregório de Matos o primeiro jornal brasileiro, onde estão registrados os escândalos miúdos e graúdos da época, os roubos, os crimes, os adultérios e até as procissões, u aniversários e os nascimentos que ele tão jubilosamente celebrou nos seus versos.
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