quinta-feira, janeiro 15, 2009
LÍVIA TUCCI
Imagem: Etendue - Óleo sobre linho, de Craig Srebnik
O ERÓTICO AVESSO DO CRISTAL DE LIVIA TUCCI
ENCARNADA
Que eu toda me desabroche em cólicas,
que eu me abra em vísceras, retóricas,
em pitangas menstruadas,
toda em cascatas para ti.
Que eu me torne corpo, culpa, cópula,
em orquídeas selvagens, que eu me forme,
em pétalas de meus seios, que eu me desforme,
quando a língua ameaça seu passeio.
Que sejas taça de morangos, num rebanho de coral,
que eu toda me inverta, no sentido absoluto da ousadia,
quando amar é decifrar o vício mais sangrento
em sobre-humana ferida que não estanca.
EVOLUÇÃO DOS HOMENS
Que me alises, felina, em pleno cio,
como os gatos se enroscam e
ronronam
horas a fio, horas a fio.
Yo no creo en las brujas
pero que las hay, hay.
E por que doem minhas vísceras de ruminante?
E pra quem armam tuas unhas fendidas,
a visão noturna, a fome de cães,
um império de animais?
Que me alises, linda, lírica,
em onírica malícia, verte
e baba a resina, a sina química
que solta dos pêlos, favos.
Que adormeça, messe, meça
outro cio que estiver por vir.
E se eu me hibernar
no teu olhar de lince?
E se eu derramar em ti,
meu líquido denso,
numa várzea de véus?
Que eu mereça tuas mandíbulas,
no alvo exclusivo, que eu pereça,
que eu feneça em nódulos,
em lendas pré-históricas, que eu me esqueça.
E assim sendo, serei o pêndulo
da tua espinha,
te guiarei das trilhas à tocaia.
Eu, descuidada, um antílope.
Nós, liquidados, presas submersas,
e nas pernas rígidas, o colapso,
no tronco, o último golpe.
Perigoso, perigoso, que te tornes,
no tempo do abate, que é ora findo,
quando as pontadas de fome
nadarem em derredor.
Deus, salva-nos do dilúvio.
Que a disputa não se finda,
que as lutas entre os machos prevaleçam,
o instinto, a onomatopéia, o instinto,
as espécies e as fêmeas.
Deus, a benção.
A ciência dos flamingos, clamo.
A fidelidade dos cisnes, clamo,
pelos animais em evolução.
Brisa nenhuma quebre a placidez dos ares,
o círculo das águas.
Que eu equilibre a natureza,
no instante letal do medo.
Animais em fuga, sejamos sempre,
em majestosa solidão.
Que nos habitem chacais do vale.
Que eu aprenda
a evitar, cada vez mais,
a tua mão de Homem.
A ciência dos flamingos, clamo.
A fidelidade dos cisnes, clamo,
pelos animais em evolução.
Brisa nenhuma quebre a placidez dos ares,
o círculo das águas.
Que eu equilibre a natureza,
no instante letal do medo.
Animais em fuga, sejamos sempre,
em majestosa solidão.
Que nos habitem chacais do vale.
Que eu aprenda
a evitar, cada vez mais,
a tua mão de Homem.
RETAGUARDA
Surram suas costas
e o sangue segue seu talhe,
escorre pela curva,
a que mais se acentua,
segue seu curso
e morre na marca,
onde tudo principia.
E ela deságua
quando os homens desabam
nas argamassas, nos orgasmos,
no terreno mais temido.
Os homens se embrenham, por instinto,
em tudo que é proibido.
E uma mulher obediente,
nessa hora, cede tudo:
seus músculos,
seu íntimo, seu absoluto.
E outra vez,
essa mulher se traça
humilde, num abraço
e ninguém vê
a vaga resignação
no seu olhar,
quando abre a porta
e murmura: “Entrai e comei.
A casa é tua.”
PÁSSARO MATERNAL
O que faz esse homem chegar
com os vendavais do seu inferno,
compondo o medo na sede do meu sangue,
quando emigro as aves roucas da garganta
e perfumo-lhe a noite com a flor do mangue?
O que dorme em tua veia,
quando te atreves a beber, incólume,
a sanguinária vertente do meu sonho?
O que faz esse homem chegar,
me suplicar como um menino,
se orientar na bússola uterina,
quando chega como animal na agonia,
que lentamente expira
e suga-me o seio maternal e viperino?
O que cospes em meu ventre:
uma matilha de sementes sórdidas?
Legiões de anjos com bocas mórbidas?
Onde sou melhor, se te invento a cada dia:
quando saio trêmula pelo vidro
ou quando te enxerto em fecunda poesia?
POR UM FIO
Arranha
esta aranha,
côncava de pêlos;
quem dera ser o fio
nesta teia
de novelos;
quem dera ter o ofício
de tecer
o que te enleia.
Aranha tecelã,
arguta trepadeira,
ah, meu amor,
ara em mim
as tramas,
com dedos
de fiandeira.
AFLUENTE
Rio caudaloso e brando,
lava-me alva e árida,
salva-me dos naufrágios,
se me navegas tanto
em travessias e correntezas.
Se em nós flutua o canto
de proas e lemes,
nas embarcações das incertezas.
Seca-me, paciente, alma à deriva,
com tua boca de rio,
lábios crespos de mar.
Rio sinuoso e vertente,
arrasta-me em enchentes de mel,
deságua-me, no corpo, em sal,
salva-me, mais uma vez,
do vicioso mal.
Se em festa, és meu rio afluente
nas águas desse (a)mar,
é onde quero navegar, barcos de sonhos,
é onde vão transbordar, influentes,
nas redes dos meus desejos.
Pássaros fluviais. Úmidos guerreiros.
HERMAFRODITA
Que eu me envolva,
que eu em vulva,
que eu me em verve.
Do corpo adormecido,
a saliva acorda-nos em tempestades,
lava-nos em cântaros, a cidade.
Do animal desordeiro,
as ancas trêmulas e góticas,
cavalga-nos o potro em soluços, os cheiros.
Que eu me envolva
na verve de tua vulva,
que eu me inflame
no fluido de teu falo,
que silente calo, calo, calo.
Da boca,
que a reparto em duas,
em desmedida e assexuada gula,
sugo de uma só vez, ambíguos lagos.
REFAZENDA
Me apresento,
nua e bela,
uma metamorfose
de animais.
Roubo seus instintos,seus pêlos e cheiros,
apores e sons,
o baque surdo
das patas
as ancas violentas,
num tremor infernal.
E me apresento,
sem distinção,
eqüina ou humana,
na dança dos quatro atos,
num jogo de entrega e fuga.
a tua pele, meus animais,
que inundam
campos, pradarias, os currais.
E corro,
voraz e bela,
por entre as cancelas
do teu coração.
STRIPTEASE
Anoiteço árida,
adormeço úmida,
no emergir dos pêlos,
no arrepio dos passos,
quando a noite tece em nós
a opala túrgida.
E no dia seguinte,
sangüínea e dilatada,
outra vez, anoiteço.
E atenta a essa festa, recomeço.
Mostro, cubro,
desnudo a curva casta,
minhas partes mais pudendas,
as mais brancas,
e o show must go on
ao som de um blue.
E entre véus
e a fina blusa, entreaberta,
o lado claro do cenário
é a luz de um abajur.
Enquanto tento despir estrelas,
te dar um amor imenso,
dentro de minha blusa, entreaberta,
constróis a Via Láctea em silêncio.
MARÍ(N)TIMA
Teu corpo alagado
é um porto selvagem e inconstante,
quando tudo fora é sequidão e estio.
Eu, enchente de rios, matas, peixes,
que teimas represar em mim.
Na incessante busca e entrega,
por sobre a pele alva e salina,
voe-me, albatroz, em doce agonia,
flecha-me o alvo, o túnel, o arco.
Inunda, finalmente, em espumas gotejantes,
a branca praia, deserta e encantada
ávidos ao mastro, redescobrindo terras,
a posse será lenta, a invasão armada.
Serei em teu corpo, a mulher que insisto,
serás em minha mão, meu pássaro em extinção.
NO REINO DE APRENDIZ
Ainda que febre e vertente
o instinto e ócio se bastam,
mais o contágio se inverte
se no avesso da fruta, sou bagaço.
Se no retalho do corpo, sou farpa
mais minha boca tritura,
a lâmina e o fio se gastam
ainda que reste a armadura.
Ainda que pele erodida
o estio do corpo se faça,
mais o dardo engravida
se no vinco da pele, sou traça.
Se no chão ou taça, sou bebida
mais minha carne se trava,
o caroço e a fruta, se comida
ainda que raiz e erva brava.
Ainda que tarântula e teia
o pó e a seda se trançam,
mais o ninho se azeda e semeia
se no micróbio e larva, sou lança.
Se a larva abrir o contágio
e a erva curar a ferida,
ainda que dure um estágio
ainda que dure uma vida.
PREFÁCIO
De todas as formas,
a que mais ama,
a que mais enseja,
é a alma turbulenta,
a que impera
na sucessão dos dramas,
cal que sedimenta.
Única armadura,
nicho de chagas,
em vão, a espreitar
o corpo,
mil sentinelas de magos.
Úvida embocadura,
necto mineral,
enfim, a esplender
em partos,
todo o avesso do cristal.
LÍVIA TUCCI – A cantora, escritora e professora mineira, Livia Tucci é bacharel em Turismo, artesã e designer de jóias e bijuterias formada pela Escola Mineira de Joalheria, em Belo Horizonte, nos cursos de Desenho de Jóias e Joalheria Básico. Estudou piano e participou do Coral do BDMG até 1994, em Belo Horizonte, como contralto e mezzo soprano. É autora do livro de poemas “O Avesso do Cristal”. Edita os blogs Miss Jazz in Black and White e Livia Tucci em Poesia, Imagens e Sons.
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