quinta-feira, setembro 25, 2008
MARIETA CRISTINA DOBAL CAMPIGLIA
Imagem: Cloudis.
DOIS RELATOS DE MARIETA CRISTINA DOBAL CAMPIGLIA
ALGO DELE
As mãos invadiam-na com a intimidade de bichos vivos,percorrendo suas entranhas quentes e assustadas.Parecia que iriam se perder por dentro, arrancando alguma coisa sua (ou quem sabe, virando-a prazerosamente do avesso).
De alguma forma esquisita, a água fazia parte do desejo enorme, e de repente teve vontade de possuir o mar, as chuvas, os rios... mas sentiu-se seca e com vontade de afundar. Não havia luz nem escuro, nem penumbra: era como ficar fora do mundo, em algum lugar como um trapézio, suspensa.
Havia subido (algum lugar alto do qual contemplava o ventre, porque nele concentrava-se o prazer). Num instante de mistério, o corpo todo chegou lá encima, e adormecendo todos os músculos(até os olhos,a língua,as asas que parecia ter)despencou como de um penhasco em sono profundo.
Um som de ridículas campaínhas tirou-a do pico da montanha (e quase caiu no precipício): era hora de levantar.
"É difícil amar assim", pensou. Pelo menos tinha dele o pensamento, a sensação da presença. Somado ao solitário prazer de pensar seu beijo, estava a vontade de ser invadida- que parecia não deixá-la em paz. Mas sempre, depois de se atirar no penhasco; havia algo dele que a acompanharia pelo resto do dia. Havia?
JULIANA QUASE CHEGANDO LÁ
Seus músculos doíam e resistiam a entregar-se: não conseguia pensar em transar com ninguém, nem mesmo em olhar para algum homem que pudesse seduzi-la. A dor que ficara da ida do Arnaldo era tão forte que não ousaria sair desse estado (até quando? Como seria? Quanto tempo lhe custaria?). As perguntas não verbalizadas também lhe incomodavam, principalmente à noite. Mesmo curtindo sexo como acreditava ser seu caso, nada parecia ter o poder de tirá-la dessa coisa sem graça. Vivia a sensação da famosa parede lisa, tão lisa que por mais que arranhemos não nos permite fincar as unhas. Lisa, a vida estava lisa como uma parede de azulejos...
Naquela noite era a festa da Solange. “Tenho que ir”, pensou Juliana. “Tenho...”
Vestiu-se sem vontade, jogou na roupa uns poucos pingos de perfume sem muito cuidado e desligou a televisão que embora ligada, falava sozinha. “Nenhum clima para festa”, pensou.
Ao chegar não havia vaga para estacionar perto do prédio da amiga. Dava para escutar música dos andares superiores do prédio, e na rua muito barulho de carros. Gente nas calçadas, vendedores ambulantes, cachorros (já vira dois) e ela, que deixara seu carro bastante longe da entrada do prédio. Andava com os músculos que pediam para ficar deitada, mas desta vez ela os convencera de que não era possível dormir cedo. Dormitar, virar na cama, tentar qualquer coisa para chamar o sono: desta vez teria que fingir gostar de estar na festa de sua melhor amiga. O presente- o livro que comprara para Solange- acabava de perceber que ficara no carro. “Droga”, pensou “tenho que voltar”. E lá foi. Ao chegar perto do carro, de salto e incomodada porque a rua era íngreme e teve que subi-la; assustou-se ao chegar bem próximo do carro. Um homem de jaqueta de couro surgiu do outro lado do carro, onde estava abaixado, com uma arma que apontou próximo a ela: “aí, princesa, entra no carro”, mandou. As mãos e pernas de Juliana tremiam sem controle. “Entra, caralho!”, repetiu o homem. Ela obedeceu, e o homem –que já abrira a porta traseira, entrou junto com ela. “Vai, dá a partida”, “vou ter que procurar a chave na bolsa”, disse “me dá a bolsa aqui”, e arrancando a bolsa de sua mão, virou-a no banco de trás, sempre mantendo a arma junto ao corpo de Juliana, com o braço esquerdo esticado entre os bancos da frente- fazendo tudo para não chamar a atenção, mesmo contando com que ninguém olharia para dentro do carro, pois os vidros eram escuros... “Vai, dá a partida”, “...e não olha muito pra mim, vamos dar um passeio...”
Rodaram por mais ou menos quinze minutos, afastando-se do centro da cidade. Juliana começou a sentir náuseas, e tentou dizer- mas o homem, que agora acendia um cigarro, interrompeu dizendo que calasse a boca.
Chegaram numa rua escura, perto de uma estação de trens antiga e abandonada. A noite estava ficando fria, e Juliana não conseguia parar de tremer. “Tá vendo aquele galpão aí na frente?”, perguntou o homem. “Sim”, respondeu. “Desce do carro e vamos para lá”.
Os dois desceram. Não havia uma pessoa sequer por perto, e as lâmpadas dos postes estavam quebradas. Terceiro cachorro que via, e que não lhes deu a mínima; passou na calçada da frente.
Entraram no galpão por uma porta lateral que o homem abriu com facilidade.
O cheiro de gasolina era forte, ou era talvez querosene- algo parecido...O lugar tinha uns seis ou sete metros de cumprimento, as paredes pareciam sujas e no chão, contra a parede à esquerda, um colchão de casal com uns cobertores sobre ele. O homem acendeu uma lâmpada de luz bem fraca perto da porta que iluminou o local, que ficou na penumbra. Havia uma garrafa de vinho num banquinho de madeira no canto oposto e algo que parecia ser um embrulho.
“Você vai tirar a sua roupa, e deitar no colchão. Certo?”- disse à Juliana, empurrando-a e puxando outro banco que estava próximo à entrada.
“Não, você não vai me obrigar a isso”, disse Juliana, com a voz Trêmula (“será que tenho coragem de morrer só pra não "dar pro cara?”, pensou com ela mesma) e o homem repetiu : “gracinha, não me faça fazer o que não quero. Você vai tirar a roupa e fazer o que mando”...
As sensações de Juliana eram avalanches de impulsos contraditórios. Algo a excitara de repente, e ao mesmo tempo estava morrendo de medo. Sentia-se molhada entre as pernas, e não sabia diferenciar o que era...Parecia haver menstruado, mas sabia que não. Não se permitia a idéia absurda de estar excitada com aquilo...
O homem sentou-se no banco, à frente do colchão, e repetiu que tirasse a roupa. Ele, agora sem o cachecol que cobria seu rosto, mandou-a deitar.
Juliana, sem nada a fazer, obedeceu. Toda atrapalhada retirou a roupa, e antes de tirar o sutiã e a calcinha, olhou para o homem (e não pôde deixar de perceber -e admirar consigo mesma- os belos traços que agora ele não escondia... Tinha olhos escuros e um rosto que parecia desenhado, cabelos pretos, lisos e algo compridos, caindo sobre a testa.
Ao admirar o homem, sentiu-se entregue ao que viesse, e pela primeira vez em tantos meses, a parede não mais era de azulejos, e não estava lisa : ela conseguia sentir que a arranhava...Seus músculos agradeciam continuar existindo.
O homem retirou a calça, desabotoou a camisa, e disse, pegando firme nos braços de Juliana : “então, vamos lá: fala pra mim que você não quer dar, e eu te deixo ir...fala...”
Juliana sentia o coração bater com tamanha força, que parecia sair pela boca, e só conseguiu dizer “não” com a cabeça...
“Não o quê, vagabunda? Vai dizer que não quer dar ou que não quer ir embora?”
“Hein?”- perguntou o homem, sacudindo-a ...
Ela não conseguia falar, e apenas encolheu os ombros como se estivesse indiferente.
“Tá bom, vou considerar que tá a fim”, disse o homem, deitando-a no colchão com certa inesperada delicadeza.
Foi beijando o corpo de Juliana por inteiro, deslizando as mãos como nunca ninguém o fizera, enfiando a língua em todos os buracos possíveis... Juliana, gemendo de prazer pensou em como iria se olhar no espelho depois, como iria enfrentar a vergonha do acontecido, mas nessa hora pouco importava, porque nunca sentira tanto prazer. As mãos do homem a percorriam com incrível destreza, até que sentiu-se tremendo dos pés à cabeça, e percebeu a língua quente penetrando-a, fazendo suas pernas se abrirem cada vez mais, até que subitamente escutou um barulho estranho que a assustou. Era a campainha da porta de entrada acordando – a . Hoje era sábado, e a dona Matilde chegara para a faxina... E na verdade, o aniversário de Solange já acontecera semana passada...
MARIETA CRISTINA DOBAL CAMPIGLIA – A uruguaia radicada em São Paulo, Marieta Cristina Dobral Campiglia é profissional da área de saúde, com graduação em Enfermagem e Mestrado pela Unifesp, em Saúde Mental. Ela coordena o curso de graduação em universidade particular paulista. Também é autora de poemas, contos, crônicas, artigos, dentre outras expressões literárias.
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