segunda-feira, junho 29, 2009
KIERKEGAARD
Imagem: Bather with a Griffon, 1870 do pintor do Impressionismo francês, Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)
DIÁRIO DE UM SEDUTOR DE SOREN AABYE KIERKEGAARD
(...) Ela arrependeu-se, mas não encontra repouso, porque os pensamentos acusadores a desculpam; foi ele quem, pela sua astúcia, lhe introduziu na alma tal projeto. E então odeia-o, o seu coração alivia-se em maldições, mas, uma vez mais, não encontra repouso; censura-se por tê-lo odiado, ela, que é afinal uma pecadora; censura-se porque, apesar de todas as perfídias pro ele praticas, sempre será culpada. Ele agiu cruelmente para com ela, enganando-a e – quase seriamos tentados a dizê-lo – mais cruelmente ainda por ter despertado nela a reflexão versátil, porque lhe provocou uma evolução suficientemente estética para que ela não escute já, com simplicidade, uma só voz, e seja capaz de nessa voz descortinar, ao mesmo tempo, múltiplos sentidos. Desperta então na sua alma a recordação; esquece a sua falta e culpa, para apenas recordar os momentos de beleza, aturdindo-se numa exaltação mórbida. Em tais momentos, não somente o recorda, como ainda o compreendo como uma clarividência que prova quão profundamente ela evoluiu. E já não vê nele nem o criminoso, nem o homem nobre; nesses momentos a lembrança que dele tem é puramente estética. Escreveu-me uma vez um bilhete onde exprimia as suas impressões a respeito dele: era, por vezes, de tal modo intelectual que eu me sentia reduzida a nada como mulher, e noutras tão selvagens e apaixonado, cheio de tantos desejos que quase me fazia estremecer. Umas vezes eu era para ele como uma estranha, outras abandonava-se inteiramente; mas se, num destes últimos momentos, lhe lançasse os braços ao pescoço, tudo podia mudar num só instante e o que eu abraçava era apenas uma nuvem (...) Ele era um incompreensível instrumento, sempre vibrante e com uma amplitude que a nenhum outro poderá alcançar; ele era a soma de todos os sentimentos, de todos os estados de espírito; (...) E era uma inexpressível angustia, mas misteriosa, feliz e inefável, que eu escutava essa musica que eu própria provocava e, ao mesmo tempo, não provocava, mas era sempre harmoniosa. Ele continuava a enredar-me nas malhas do encanto. (...) Ai de mim, nada existe no mundo tão totalmente impregnado de sedução e maldito como um segredo.
(...) Se um homem fosse incapaz de manter na memória uma imagem da beleza, nem sequer no instante da sua presença, ver-se-ia obrigado a desejar estar sempre afastado dela, nunca demasiado próximo para assim poder ver a beleza do que aperta nos braços, e que já não vê, mas poderia rever se se afastasse, e que afinal, no momento em que lhe é impossível ver esse objeto por estar próximo dele, no mento em que os seus lábios se unem num beijo, será mesmo assim visível para os olhos da sua alma... ah, como ela é bela! Pobre espelho, que suplicio para ti, mas também que sorte por não saberes o que é o ciúme. A sua cabeça, perfeitamente oval, inclina-se um pouco para a frente, o que lhe realça a fronte; esta ergue-se, altiva e pura, sem de modo algum refletir as suas faculdades intelectuais. Os seus cabelos escuros emolduram terna e docemente a fronte. O seu rosto é como um fruto, arredondado e túmido; a pele é transparente e os meus olhos dizem-me que será, sob os dedos, de macio de veludo. Os seus olhos – sim, ainda os não vi, escondem-se atrás de pálpebras cujas armas, pestanas onduladas e sedosas, representam um perigo para quem lhe procure o olhar. A sua cabeça é como a de uma madona, impregnada de pureza e inocência;inclina-se como a da Madona, mas sem se perder na contemplação do Único, há mobilidade na expressão do seu rosto. O que ela contempla é a variedade, as múltiplas coisas, sobre as quais lançam um reflexo as esplendidas suntuosidades da Terra. (...) Nada de impaciência, nada de avidez; o prazer deve ser bebido em lentos tragos; ela está predestinada, encontrá-la-ei de novo.
(...) – Eis uma jovem na primeira sala, e como ela se precipita, mais rápida que a má consciência perseguindo o pecador. (...) Estarei cego? Terá a minha alma perdido o seu poder visual? Via-a, mas é como se tivesse sido uma revelação celeste, pois a sua imagem de novo desapareceu completamente para mim (...) Nunca esperei ser capaz de voltar a saborear estas primícias de uma paixão. Sucumbi ao amor, obtive aquilo a que os nadadores chamam uma passagem, não é pois de espantar que me sinta um pouco perplexo. Tanto melhor, vejo nisso a promessa de um prazer maior.
Já não me reconheço. Frente às tempestades da paixão o meu espírito é como um mar enraivecido.
Como é belo estar apaixonado e como é interessante saber que se está. Eis a diferença. (...) A sorte não nos bafeja muitas vezes, devemos pois aproveitá-la o mais possível quando se apresenta; o mal está em que não é de modo algum difícil seduzir uma jovem, mas sim encontrar uma que valha a pena ser seduzida. – O amor possui muitos mistérios e, no primeiro, também os há, embora de importância secundária – a maior parte das pessoas lança-se para a frente de olhos fechados, comprometendo-se num noivado ou fazendo qualquer outra parvoíce e, pronto, em menos de um nada tudo está acabado, e ficam sem saber nem o que ganharam, nem o que perderam.
(...) O destino mais profundo da mulher é ser companheira do homem (...) Quisesse eu imaginar a jovem ideal, vê-la-ia sempre só no mundo e, por conseqüência, entregue a si própria, e sobretudo sem amigas.
Cordélia! Que nome magnífico! – Fico em casa e, como um papagaio, exercito-me a tagarelar, digo: Cordélia, Cordelia, minha Cordélia. Tu, minha Cordélia! (...) É necessário ter poesia bastante para não trair o encanto do momento, e o ator deve ter sempre o seu papel de cor.
(...) É verdade que estou apaixonado, não há duvida, mas não no sentido próprio, e a este respeito é também necessário ser muito prudente, pois as conseqüências são sempre perigosas; e só se está apaixonado uma vez, não é assim? Mas o deus do amor é cego e, sendo-se suficientemente astuto, é possível enganá-lo. No que se refere às impressões colhidas, a arte consiste em ser tão receptivo quanto possível, e em saber aquela que se produz sobre as jovens, bem como a que estas provocam. Assim, pode-se estar apaixonado de muitas ao mesmo tempo; porque as amamos de diferentes maneiras. Amar apenas uma é demasiado pouco; amar todas é uma leviandade de caráter superficial; porém, conhecer-se a si próprio e amar um numero tão grande quanto possível, encerar na sua alma todas as energias do amor de modo que cada uma receba o alimento que lhe é próprio, ao mesmo tempo que a consciência engloba o todo – eis o prazer, eis o que é a vida.
(...) Como estava graciosa no seu vestido muito simples, de algodão, de riscas azuis, com uma rosa acabada de colher, tão fresca e viçosa como se tivesse desabrochado naquele mesmo instante.
(...) Uma tal rapariga deve tornar um homem feliz (...) A jovem é deliciosa e dá prazer aos olhos.(...) nunca no entanto esquecerei que um homem só está acabado quando atinge a idade em que nada pode aprender com uma donzela.
O amor ama o segredo – o noivado revela; ama o silêncio – o noivado é pregoeiro; ama o murmúrio – o noivado proclama ruidosamente; e no entanto, graças precisamente à arte de Cordélia, o noivado será um meio excelente para iludir os adversários. Numa noite sombria, nada há de mais perigoso para os outros barcos que acender as luzes de bordo, pois enganam mais que a escuridão.
(...) Para uma jovem o infinito é tão natural como a idéia de que todo amor deve ser feliz. Onde quer que uma jovem se encontre, ela encontra o infinito ao seu redor, e para ele passa num salto...
(...) e o amor prefere preparar os seus próprios caminhos.
O amor tem suas posições. (...) Chamarei à sua paixão presente uma paixão ingênua. Mas, efetuada a mudança de rumo, quando eu começar seriamente a retirar-me, ela fará todo o possível para me encantar realmente. Como meio apenas lhe restará o próprio erotismo, com a diferença de que este aparecerá então numa escola muito mais vasta. Lutará por causa de si própria, porque sabe que eu possuo o erotismo; lutará por casa de si própria a fim de me vencer. Terá mesmo necessidade de uma forma de erotismo superior. O que, graças aos meus estímulos, lhe ensinei a suspeitar, far-lho-á compreender então a minha frieza, mas de modo que ela pense que o descobriu por si própria. Deste modo, pretenderá apanhar-me desprevenido, julgará ser-me superior em audácia e, assim, ter-me conquistado. A sua paixão tornar-se-á então decidida, enérgica, concludente, dialética, o seu beijo total, o seu abraço de um irresistível entusiasmo. – Procurará em mim a liberdade e encontrá-la-á tanto melhor quanto mais fortemente eu a enlaçar. O noivado será desfeito, e então necessitará de um pouco de repouso , para que nenhuma fealdade se produza nesse tumulto selvagem. A sua paixão recolher-se-á ainda uma vez, e ela será minha.
(...) O amor é demasiado substancial para se alimentar de conversas, e as situações eróticas demasuado graves para com elas se sobrecarregarem. São silenciosas, calmas, tem contornos nitidamente definidos e, contudo, são eloqüentes como a música do colosso de Mêmnon. Eros gesticula, não fala; ou se o faz, é apenas através de misteriosas alusões, de uma harmonia repleta de imagens. As situações eróticas são sempre plásticas e pictóricas; mas se dois amantes falam, juntos, do seu afeto, isto não é plástico nem pictórico.
(...) Eis por que velo por ela, por todas as suas observações fortuitas, por qualquer palavra lançada ao acaso e, ao restituir-lhas, tenho-as sempre transformado em algo de mais significativo, de que ela, não o conhecendo, sabe mesmo assim o sentido.
(...) Como são sedutores os caminhos do amor, e como é interessante descobrir até onde se atreve a chegar uma determinada jovem! Continuei a atear o fogo. O espiro, os ditos graciosos, a objetividade estética, contribuíram para tornar o contato mais livre e, no entanto, nunca foi ultrapassada a mais estrutura decência. (...) usa as flechas dos olhos, o enrugar das sobrancelhas, a fronte cheia de mistério, a eloqüência da garganta, as fatais seduções do seio, as súplicas dos lábios, o sorriso das faces, a doce aspiração de todo o seu ser. Há nela a força, a energia de uma Valquiria, mas essa plenitude de força erótica tempera-se, por sua vez, com uma certa languidez terna, como que exaltada sobre ela.
(...) Cada um tem o seu: o sorriso alegre; o olhar ladino; os olhos ardentes de desejo; a fronte altiva; o espírito galhofeiro; a doce melancolia; a intuição profunda; o humor sóbrio e fatídico; a nostalgia terrestre; as emoções não confessadas; as sobrancelhas eloqüentes; os lábios interrogadores; a testa cheia de mistério; os caracóis sedutores; os cílios que escondem o olhar; o orgulho divino; a castidade terrena; a pureza angélica; o insondável rubor; os passos leves; o balançar gracioso; a pose langorosa; o devaneio cheio de impaciência; os suspiros inexplicados; a cintura esbelta; as formas suaves; o colo opulento; as ancas bem arqueadas; o pé pequeno; a mão gentil. – Cada uma tem o seu, e uma tem o que a outra não possui. (...) Fique Deus com o céu, se eu puder ficarei com ela. (...) pois todo o rubor dos lábios e o fogo do olhar e a inquietação do colo e a promessa das mãos e o pressentimento dos suspiros e a confirmação dos beijos e o estremecimento do contato e a paixão do amplexo – tudo -, tudo seria reunido nela, que me prodigalizaria tudo o que teria sido suficiente para este mundo e o outro. (...) pois a mulher é o sonho do homem. Ela apenas desperta ao contato do amor, e antes desse momento é apenas sonho. Mas nessa existência de sonho, podemos distinguir dois tempos: primeiro o amor sonha com ela, depois ela sonha com o amor.
Esta existência da mulher é corretamente expressa pela palavra: graça, que recorda a vida vegetativa. Como os poetas gostam de o dizer, ela assemelha-se a uma flor, e a própria espiritualidade tem nela um caráter vegetativo. (...) apenas se torna livre através do homem, e por isso o homem lhe pede a mão e se diz que ele a liberta; o homem pede, a mulher escolhe. A mulher é vencida, o homem o vencedor e, contudo, o vencedor inclina-se diante do que foi vencido; aliás, nada mais natural, e apenas a grosseria e a estupidez e a insuficiência de sentido erótico serão capazes de não apreciar o que assim resulta do contexto. Podemos também encontra uma razão mais profunda para este fato. Porque a mulher é essência, o homem é reflexão.
(...) Um Barba-Azul mata, na própria noite de núpcias, todas as jovens que amou, mas não tem prazer em matá-las, pelo contrário, o prazer foi tido antes, o que constitui a manifestação material: não há crueldade pela crueldade. Um Don Juan seduz-las e abandona-as, mas todo o seu prazer reside em as seduzir e não em as abandonar; não se trata, pois, de modo algum, dessa crueldade abstrata. (...) a mulher é também aparência; é tudo para eles durante toda a vida.
(...) – Que ama o amor? O infinito. – Que teme o amor? Limites.
(tradução de Carlos Grifo)
SOREN AABYE KIERKEGAARD (1813-1855) – O filosofo e teólogo dinamarquês, Søren Aabye Kierkegaard é conhecido como o pai do Existencialismo, um dos raros autores onde a vida pessoal exerceu profunda influencia no desenvolvimento de sua obra, com as inquietações e angustias que o acompanharam ao longo da vida. A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época. Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, com uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O Diário de um Sedutor é um livro escrito que corresponde ao estágio estético da existência que o próprio Kierkegaard viveu, enquanto se entregava a uma vida boêmia pelos salões e teatros de Copenhague. O sedutor kierkegaardiano desempenha o seu papel na época da juventude, pautada pelos padrões da vivência estética, em que a ópera se revela mais real do que as próprias contingências do cotidiano com suas responsabilidades e deveres. Johannes, o diarista desta obra, conta o modo como seduziu a inocente e pura Cordélia, os ardis de que se serviu para se insinuar na sua esfera social, o modo como lhe foi captando a atenção, principalmente quando se anulava enquanto espectador interessado, a astúcia que o fez cativar a tia para chamar a atenção da sobrinha e como, finalmente se tornou seu noivo. No entanto, esta assunção do noivado não interessava ao nosso esteta, pois uma vez seduzida, qualquer jovem perde o interesse para o sedutor, pois o noivado e o casamento não podem inscrever-se nos contextos da fruição artística. Ele não quer possuir, muito menos conquistar ou conduzir até ao altar o objeto de sedução: o seu prazer reside no deleite de absorver o rubor da face da jovem enlanguescida, o tremor do lábio, o agitar dos cílios e, embora Cordélia seja a protagonista por excelência desta obra, o certo é que Joahnes lança as suas redes sobre outras jovens, deleita-se, no mero fruir da contemplação, nessa "concupiscência espiritual" tão cara ao espírito superior do joven Sören. O autor quando jovem tentou, em vão, aderir ao comprometimento ético com a bela Regina Olsen e, se não veio a consegui-lo não foi porque o motivasse o regresso à vivência própria do período estético - os saltos existenciais não se dão para trás - mas porque a sua vocação de pensador metafísico o atirou para a solidão da missão religiosa.
Fonte:
KIERKEGAARD, Soren Aabye. Diario de um sedutor. São Paulo: Abril, 1979.
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