terça-feira, dezembro 11, 2007



Imagen: Delirium, 2002, do fotógrafo italiano Aldo Palazzolo (1948).

A MENINA DOS OLHOS DO BOCEJO ETERNO

...pois já que tu és
a promessa de um sonho por se realizar
pra viver e ser feliz
e jamais será fuga de um beijo
ou desejo fugaz
enquanto não se chora uma dor
a gente poderá ser feliz
muito mais...


Luiz Alberto Machado

A platéia estava repleta de estudantes secundaristas e eu, mais reboculoso que meu próprio tamanho, tão espaçoso de quase não caber na tribuna, inchado de idéias e defendendo o meu peixe a recitar versos e vociferando despautérios que sempre julguei convenientes na minha utópica doidice, como de que só a arte e a educação seriam as principais alavancas para uma humanização mais cônscia de participação do indivíduo, defendendo veementemente, no meu discurso tresloucado, a natureza, a vida sustentada em bases sólidas de visão aberta, a justiça social proporcionando uma possível paridade entre ricos e pobres, de direitos e deveres bem distribuídos, na consciência da nossa inutilidade, finitude e insignificância perante a amplitude do universo, entre outras coisas esdrúxulas da minha frenética geringonça intelectual, chega dava para notar a zarolhice dos presentes aos meus desvarios intelectuais.
No meio de tanta cabeleira, olhares e fungados juntos no recinto, eis que, na segunda fila, eu vira uma alminha singela, uma Britney Spears que estava hipnotizada com a minha oratória.
Com o olhar firme, ela nem piscava e isso me enchia de pernas, maior embaraço. A cada olhadela, ela lá firme fisgando, arrancando minhas entranhas, desnudando-me inteiro. Endoidei de vez, então.
Ela, por isso, foi responsável por ampliar ainda mais a minha confusão mental, de quase perder o fio da meada e toda racionalidade, enrolando-me no meu próprio labirinto.
Seu olhar roubava minhas idéias, fragmentando meus neurônios numa encruzilhada entre a razão e a emoção, fazendo-me buscar um esforço descomunal para concatená-las e conseguir uma linearidade de pensamento que fosse, pelo menos, coerente com o que eu havia proposto naquela palestra, que nada, metendo as mãos pelas pernas qual bípede energúmeno resultava, deus meu.
Eu, que reconhecidamente nunca fora papa-anjo, avalie, estava abestalhado com aquela cândida figurinha.
Nossa! Como é linda a juventude, a vitalidade, a vida saltando pela manifestação presente daquela pessoínha singela viva, tomando conta de todos os sentidos e atenções.
Consegui mesmo assim, aos trancos e barrancos, estancando e empurrando, debreando e acelerando, finalmente concluir minha falácia, ficando a disposição dos presentes para a sabatina regular.
Perguntaram disso, daquilo, despropósitos, insinuações, se eu acreditava em deus; o que me fez virar poeta; qual a razão de escrever mediante alto índice de analfabetos e esfomeados; que razão teria para dizer minhas asneiras contra a parede inexorável da indiferença; e outras tantas inquirições que fui, aos poucos, levado a revelar minhas peraltices despropositais. Riam-se. Por fim, aplausos. Obrigado.
Ao término dos trabalhos, surpreso com tudo e tolhido por alguns curiosos que queriam que lhes autografasse meus livros; outros, uma fotografia; uns querendo se aprofundar no obscuro mundo das minhas idéias malucas; e coisa e tal, até que ela, alminha singela bulindo, atanazando com meu tino, trouxe-me o exemplar do meu penúltimo livro de poesias para o respectivo autógrafo.
- Seu nome, por favor?
- Cecília.
- Belo nome, casa bem com sua bela fisionomia.
- Obrigada. O que o senhor está achando de Aracaju?
- Em primeiro lugar, o senhor está no céu e eu sou um frágil semideus e olhe lá, com a serasa dos pecados pesadíssima e quase sem fim. Portanto, menos formalidade, por favor. Em segundo, adoro Aracaju, tenho vindo sempre que posso rever amigos, comer guaiamum e poder desfrutar das coisas daqui.
- Se não for incômodo, escritor, eu gostaria que você colocasse depois da dedicatória, o hotel onde está hospedado ou seu telefone celular. Gostaria de realizar uma entrevista para o jornalzinho que a gente mantém no colégio. Eu e uma turma escolhemos por jornalismo e já estamos vivenciando a profissão.
- Claro, com todo prazer.
Rabisquei algo na folha de rosto do livro e mencionei o hotel e o celular onde eu poderia ser encontrado para a vindoura entrevista requisitada pela jovem simpática. Despediu-se e zarpou fora.
A comissão organizadora do evento levou-me para um restaurante onde bebericamos além da conta. E, já de madrugada, largaram-me no hotel.
O interfone estridulante acordou-me pela manhã. Quem seria àquela hora? Não se pode mais dormir? Atendi.
- Bom dia, senhor, tem uma visita aqui na recepção.
- Que horas são?
- Onze horas, senhor!
- Eita! Já? Por favor, mande subir.
- Pois não, senhor.
Nem me levantei nem nada. Devia ser alguém da comissão que organizou a palestra querendo me levar para almoçar. Eu que acostumava acordar cedo, lá pelas três da madruga, estava aboletado na cama ainda àquela hora. Era estranho, o ar de Aracaju me fazia bem. Estava bem acomodado, deveras satisfeito e com as idéias zeradas no quengo. Nada para me lamentar, nenhuma reminiscência incomodando, nenhum compromisso previsto pelas próximas vinte e quatro horas, pelo menos, e uma indolência não peculiar ao meu comportamento vexado. Estava ali, entregue. Quando tocasse a campanhia eu mandaria entrar já que eu possuía o costume de dormir com a porta fechada apenas pelo trinco. A minha indisposição não permitia que me desligasse daquela cama, da fronha e do lençol confortáveis.
Fiquei ali arriado, pensando no que me perturbariam. Cochilei com a demora.
Dlin dlon! A sineta tocou e mandei entrar, aos berros.
Alguém entrou, não vi, nem dei por menos. Não sei quanto tempo ficou, deve de ter esperado um bom bocado porque cochilava.
- Vai querer fazer a entrevista assim mesmo?
Era uma vozinha determinada imprimindo um domínio sobre si e o seu destino. O que? Uma mulher? Assustei-me e levantei a cabeça escondida no cobertor. Era Cecília.
- Desculpe importuná-lo a esta hora, mas foi você quem marcou comigo. Se quiser deixar para outro momento, por mim, tudo bem.
Aquela figura fofinha quase que me provoca um colapso de tão atônito que me encontrava. Estava desarmado, não imaginava que havia bebido tanto a ponto de esquecê-la e do nosso compromisso.
- Não, não, tudo bem, aguarde só um instante. Quiser beber alguma coisa, tem ali no frigobar, vou só tomar um banho e volto num instante.
- Tudo bem.
Ainda vi quando se dirigiu com uma saínha curta e justa até a geladeira e retirou de lá uma cerveja, destampando-a e, elegantemente, começou a beber no gargalo, sentando-se, depois, na poltrona rente à cama.
Dei uma olhadela antes de entrar no banheiro e pude constatar que aquela monumental e cândida pessoa estava ali me enchendo de pernas, atiçando minha loucura, jogando o senso pro escanteio.
Nossa, pensei cá comigo, pin-up sagrada dessa, qualquer demônio faz a festa!
O chuveiro estava me restaurando as energias. Com o seu jeito tomando conta dos meus sentidos demorei um bocado no banho, tentando reavivar meu ímpeto, organizar as idéias, extirpar o desconforto de ser surpreendido em tal circunstância.
Ao término enrolei-me na toalha e fui até o seu encontro.
- Desculpe a demora, detesto fazer alguém esperar.
- Tudo bem.
Sua resposta dava a impressão de uma constituição firme e duma natureza faiscante e impetuosa, por trás daquele corpinho púbere cheio de força de vontade e, aparentemente, com o dom de levar avante empreendimentos mesmo contra grandes obstáculos. Parecia estimulada, audaciosa, confiante, infatigável, no encalço de um ideal.
- Pode ser aqui mesmo? -, perguntei desconfiado.
- Claro! Você é quem sabe! -, respondeu firme.
- Então, vamos lá!
Voltei para a cama não antes pegar uma cerveja na freezer e me envolvi nos lençóis da cama, jogando a toalha de banho no chão.
Ela meteu a mão no seu tiracolo e retirou de lá um caderninho de notas e um gravador portátil que depositou perto de mim na cama.
Senti-lhe o perfume e o viço inebriando a minha alma. Pensei cá comigo: - Isso é uma provocação! Com certeza, está me chamando de banguelo. Que desarrumação provoca dentro de mim! Linda, linda, linda!!
Voltou-se, calma e elegantemente, para a poltrona e começou por inquirir tudo do que imaginasse. Enquanto indagava minha vida, minhas preferências, minhas obras, meus pensamentos, meus projetos, via-lhe os detalhes anatômicos, a calcinha branca mostrada pela brecha deixada entre as pernas cruzadas; a ponta do sutiã branquinho pelo desabotoado da blusa, mostrando uns peitinhos estufados no interior dela; a meia delicada dobrada nas bordas do tênis; a batata da perna roliça, os joelhos, as coxas, a meiguice arruivada dela, a sua pequena estatura, a sua epiderme alvinha, seu gesto calmo ingerindo a pilsen, tudo no seu devido lugar.
Fiquei bestificado com a assimetria elegante de seu ser. Com certeza, deus havia sido generoso com sua fôrma.
- Desculpe -, atrapalhei seu interrogatório a meu respeito. - gostaria de matar uma curiosidade minha, qual a sua idade?
- Dezenove e estou concluindo o colegial, me preparando para o vestibular de jornalismo.
- Quanta vitalidade, hem? Desculpe a licenciosidade, pode continuar a entrevista.
E foi o maior blábláblá, curiosidades, por quê isso, pra quê aquilo, por onde, o que acha, o que espera e por aí vai.
Minha geladinha acabou e ela, cortesmente, foi até onde poderia buscar outra e me entregou, conferindo se o gravador ainda estava com a fita rodando, notando que havia terminado o lado, trocando de pista e continuando na inquisição.
Já amou? Que tipo de mulher lhe apraz? Loura ou morena? Quando foi sua primeira vez? Qual a regularidade de sua atividade sexual?
Êpa, mais parecia que ela me tratava por um velho, fiz-lhe ver que possuía apenas trinta e poucos anos, quase beirando aos quarenta e que estava bastante satisfeito com a entrevista, se bem que, apesar de longe de ser um Vinícius de Morais, estava adorando estar na cama com uma jovem tão bela que perscrutava minha pessoa.
Faltando apenas cinco minutos para as duas da tarde, ousei convidar-lhe para almoçar.
- Tudo bem.
- Dois minutos só para eu me aprontar.
- Tudo bem.
Peguei uma bermuda, vesti-a no banheiro, voltei, calcei um tênis, vesti uma camiseta.
Enquanto me aprontava, sentia seu olhar pregado nas minhas atitudes. Umas duas vezes ruborizei com a sua fixação. Até que me ajeitei e descemos pelo elevador, eu fisgado e sem jeito, ela ali pregada com a pontaria aguçada, tiro ao alvo, apontada toda para mim, quando resolvi fitar-lhe da mesma forma. Senti o choque rasgando meus nervos, arrepiando minha espinha dorsal, revolvendo minhas entranhas, aprisionando minha timidez, oito andares de flerte e sedução, até que a porta abriu-se, estávamos no térreo e nos dirigimos até a portaria, onde entreguei as chaves do apartamento e atravessamos, lado a lado, a via pública, rumo a um restaurante na beira da praia de Atalaia Velha.
O esforço em ganharmos o outro lado da avenida fez com que fizéssemos algumas estripulias juvenis, proporcionando que suássemos e, ela, pronunciasse mais a sua sensualidade.
Parece que o sol quente erotizava nossos corpos. Eu me continha o mais que podia. Ela, exuberante. Dava para notar sua vitaminada compleição quando se sentou à minha frente, exultante e linda, provocando meus mais safados desejos.
Enquanto conversávamos amenidades, bebericamos, almoçamos, continuamos a conversar longa e apaixonadamente, ao que, lá pelas cinco horas da tarde, pedi-lhe que caminhássemos um pouco pela orla. Eu estava enfeitiçado, precisava desentrevar os quereres que se encontravam rijos, suplicando por seus dotes, seu corpo, sua alma.
- Tudo bem.
Seguimos pela calçada admirando o crepúsculo sergipano estreitando cada vez mais nossas afinidades. Quantas? Todas. Estávamos extremamente gentis e, ao que parece, apaixonados. Eu, pelo menos, já entregara os pontos. Ela, saindo pelos poros.
Quase uma hora e meia de caminhada, ela me indicou um barzinho climático na orla. Seguimos para lá, bebemos até alta noite, conversando miolo de pote, situações picantes, desnudamentos, simpatias e repulsas. Foi aí que soube das muitas adversidades que lhe tolhiam e que desafiava tudo com seu espírito combativo, rompendo o intransponível de forma encorajadora e estimulada. Descobri que adorava competições de forma soberana desafiando-me a uma partida de xadrez, se ganhasse ela comemoraria a sua conquista. Vangloriava-se dos seus feitos, deixando claro nunca vacilar ou arriscando seus altos interesses de se tornar uma jornalista renomada.
Lá pela uma hora da manhã pediu-me para ir embora, claro, paguei a conta e chamei um táxi para que nos levasse. Ela entrou no banco de trás me puxando pela mão. Disse ao motorista o endereço e, quinze minutos depois, estava eu deixando ela em casa. Deu-me um beijo na face, disse-me um até amanhã gentil e esgueirou-se portão adentro.
Pedi ao motorista que retornasse para Atalaia para me deixar no hotel.
Na portaria havia um punhado de recados que deixei para vê-los no dia seguinte. O celular que me esquecera também deveria ter entupido a secretária eletrônica. Deixei para lá encantado com aquela imagem boa de Cecília. Adormeci sonhando com a garota.
O barulho estonteante do interfone arrancou-me do devaneio que entorpecia e me dava um outro sentido na vida.
- Pois não?
- Bom dia, senhor, sua visita está aqui!
- Que horas são?
- Dez e quarenta, senhor.
- Eita? Dormi demais de novo, mande-a subir, por favor.
- Pois não.
Fiquei mergulhado entre os lençóis da cama, imaginando como poderia fazer com que aquele dia fosse tão prazeroso quanto o anterior.
Dlin dlon! Que rapidez? Pode entrar, está aberta.
- Boooom diiiiiiiaaaaaa! -, era Cecília exultante. Mais bela que nunca. Avançou no ambiente e beijou-me a face. Seu perfume, mais inebriante que sempre.
- Bom dia, fofinha! Como passou a noite?
- Melhor jamais existira!
- É mesmo? Que bom!
Sua ânima reacendeu em mim a alegria da juventude.
Levantei-me, fitei-lhe firme e fui até o banheiro, onde me lavei com determinação e saí enrolado na toalha.
Ela estava bisbilhotando os recados que eu havia recolhido na recepção.
- Olhe, tem uma pessoa aqui que diz ter descoberto o endereço da escritora Núbia Marques.
- É um amigo meu, eu queria conhecer a escritora...
- Por que não me disse, eu sei onde ela mora, acredito que hoje ela esteja em Portugal. Olhe, aqui tem um recado do professor João Costa dizendo para você entrar em contato com a professora Sônia van Dijck. Quem é essa?
- É uma professora paraibana que conheci pela internet que escreveu uns livros sobre Hermilo.
- Tem aqui um boletim do Edmo Menor, um livro do Danilo Sampaio, um recado da Malva Barros sobre o Armazém Literário e um cartão do Nivaldo Menezes.
- Bom...
Liguei o celular para ver os recados na secretária eletrônica e era Rolandry avisando do encontro em Recife na segunda-feira; do pessoal do Sesc me lembrando da Feira do Livro Infantil; do Ari pedindo o endereço da Arriete; do meu primo Marquinhos pedindo duas músicas para completar seu cd; do Juarez Correya cobrando a poesia viva de Maceió; e mais tantos outros que fui anotando na agenda para providenciar quando retornasse.
- Podemos continuar a nossa entrevista?
- E ainda tem perguntas para mim?
- Claro, ou você acha que acabou?
- Tudo bem, menina, o que você quer saber mais sobre este reles sujeito aqui?
Sacou da bolsa o bloco de notas e largou o gravador perto de mim.
Sentou-se, foi quando pude ver a blusa branca que vestia com um poema meu, deixando os bicos pontiagudos dos seios a denunciar a ausência de bustiê; uma saia jeans e uma sandália de salto com tiras amarradas até o mocotó. Não deixou por menos e expôs sua curiosidade extrema.
Sua aura resplandecia na minha retina. Estava eu com a garganta seca, pigarreando, peguei dum cigarro e pedi-lhe uma beer. Deu-me elegantemente, senti-lhe o aroma de carne boa e sedutora, e entre os lençóis me amufanhei, segurando meus mais loucos e extravagantes desejos.
Ping-pong.
Já havia tomado três latinhas de cerveja; ela, cinco; quando me convidou para caminhar.
Fiz um esforço para levantar-me e me banhei demoradamente, aprontei-me e saímos no calçadão pelo mormaço da tarde.
Esta seria a última tarde daquela estadia em Aracaju.
Quando mencionei isso notei que ela entristeceu.
Aportamos num barzinho da orla e bebemos até noite grande.
- Por que você tem que voltar?
- Tenho afazeres outros.
- Quais?
- Preciso estar na Febralivro de Fortaleza; tenho que me apresentar na Feira do Livro Infantil, do Sesc, em Maceió; preciso organizar a publicação de uns livros; selecionar umas músicas para gravação de um cd; e várias dezenas de compromissos agendados.
- Você gosta de Aracaju?
- Claro!
- Você gosta de mim?
- Mais do que você imagina.
Sorriu aquele riso de quem ficou satisfeita.
Recolheu o carderninho e o gravador na bolsa, deixou tudo lá na cadeira ao lado e levantou-se sem dizer nada. Desapareceu lá para dentro.
Alguns minutos depois retornou e fitou-me profundamente. Fiquei embaraçado com aquilo. Ela pegou um dos meus cigarros e tragou, tossindo.
- Quem não tem o vício de fumar, não deve fumar!
Controlou os tragos e continuou baforando na minha cara. Ingeriu o copo inteiro de uma só vez e levantou-se como se tivesse alcançado uma conquista insuperável. Era o seu troféu.
- Quando você vai partir?
- Amanhã de manhã.
A minha resposta deixou-a taciturna. Pensativa, demonstrava certo nervosismo.
- A que horas?
- Não sei, a hora que acordar!
- Tudo bem.
Algo havia clareado em seu semblante, retornando o viço e a alegria que lhe eram peculiares. Foi aí que falou pelos cotovelos. Eu adorava ouvir-lhe, desatou em confidências lascivas, contou-me de suas decepções e, não resistindo, largou-me um beijo na boca demorado. Estava totalmente entregue à minha sanha, eu sabia. Deu-me todo o seu segredo naquele beijo ardente.
Depois, pegou da bolsa e zarpou sem dizer palavras.
Fiquei paralisado. Quando dei por mim ela já havia desaparecido. Não sabia seu endereço, aliás, levara-lhe em casa na noite anterior, mas jamais saberia onde ficara, nem onde encontrá-la, muito menos o número do seu telefone. Que pena. Escorreu pelas minhas mãos sem dizer adeus.
Saí do bar e fui caminhando até o hotel.
Muitos bilhetes me foram entregues, fiz um bolo e os enverguei na mão. Estava marasmódico.
No apartamento, sentei-me na poltrona e peguei da bebida até adormecer.
Acordei sem ser incomodado, abri a persiana, era dia forte, acho que mais de meio-dia.
- É da portaria?
- Sim.
- Por favor, que horas são?
- Doze e quarenta.
- Obrigado.
- Alguém me procurou agora de manhã?
- Não, senhor.
- Obrigado, feche a minha conta que já vou partir.
Arrumei meus basculhos e repassei os bilhetes. No meio deles havia um com a seguinte inscrição: eu te amei, apesar das armadilhas que perseguem todo amor... sua. Era um trecho da minha canção, devia ser Cecília. Cadê-la? Escafedeu. Eu não conhecia suficiente Aracaju para decorar-lhe a residência. Iria embora sem dizer adeus.
Desci, minha conta já estava acertada pelos organizadores, só tive o trabalho de pegar um táxi até o aeroporto e zarpar de volta.
O tempo passou. Alguns meses depois o celular dá seu trinado.
- Feliz aniversário!
- Obrigado.
- Sabe quem é?
- Nem imagino!
- Nunca mais você foi a Aracaju.
- É verdade.
- Eu estou aqui.
- Aonde?
- Na sua cidade.
- Onde?
- Esperando você para lhe entregar seu presente.
- Cecília?
- Lembrou-se! Até que enfim! Até que enfim!
- Onde você está?
- Use de sua criatividade, descubra! Vim entregar seu presente pessoalmente.
- Onde?
- Vou lhe dar uma dica: onde eu estou, é na praia mais nobre de sua cidade, num bar onde você comemorou sua primeira música gravada por um amigo, tomando um chope e mais: estou ansiando por beijar-lhe todo.
- Deixe ver, hum...
- Outra dica: estou hospedada no hotel que você costumava se hospedar que fica entre o aeroporto e a praia que eu estou.
- Chego já!
Parti, sabia onde ela estava. Como descobrira isso?
Dez minutos depois estava eu frente a frente com aquela coisinha fofa, capaz de me virar a cabeça. Ela me abraçou com lágrimas nos olhos. Bebemos até ficarmos tontos.
- Quer receber o seu presente?
- Não se incomode com isso!
- Quer ou não quer?
- O que vier de você será bom demais pra mim.
- Leve-me daqui para onde quiser.
- É?
- É.
Fiquei impressionado. Por um instante titubiei. Ingeri alguns copos da cerveja dela e matutei o que fazer. Fechei a conta e levei a linda moça até meu carro, conduzindo-a por algumas interessantes paisagens até o motel mais próximo.
Ao adentrarmos em nossa alcova exclusiva, ela agarrou-me pelo pescoço e beijou-me incessantemente. Não me contive e retribuí-lhe os carinhos.
Seu perfume embalou meus sentimentos, entregue à sua sedução. Não me furtava a largar aqueles lábios sedosos, beijando-lhe com avidez. Era tanta saudade. Mútua. Agarrada ao meu corpo não ousou afastar um milímetro sequer. Nos desvestimos aos poucos, largando tudo a esmo, descompromissados. Fizemos dos nossos corpos nosso casulo íntimo de uma só unidade. Éramos um, então, na ensolarada manhã de maio.

© Luiz Alberto Machado. Direitos Reservados.

Veja mais Rol da Paixão.