terça-feira, abril 14, 2009
OCTAVIO PAZ
Imagem: Nude with Calla Lillies, 1944, do pintor do Realismo social e muralista mexicano Diego Rivera (1886-1957).
OS FILHOS DO BARRO DE OCTAVIO PAZ
“A sensibilidade dos pré-românticos não tardará em se transformar na paixão dos românticos. A primeira é um acordo com o mundo natural, a segunda é a transgressão da ordem social. Ambas são natureza humanizada: corpo. Ainda que as paixões corporais ocupem um lugar central na grande literatura libertina do século XVIII, somente nos pré-românticos e nos românticos o corpo começa a falar. E a linguagem que fala é a linguagem dos sonhos, dos símbolos e das metáforas, numa estranha aliança do sagrado com o profano e do sublime com o obsceno. Essa linguagem é a da poesia, não a da razão. (...) Na obra mais livre e mais ousada desse período, a do marquês de Sade, o corpo não fala, embora tenha sido o corpo e suas singularidades e aberrações o único tema desse autor: quem fala através desses corpos ensangüentados é a filosofia. Sade não é um autor passional: seus delírios são racionais e sua verdadeira paixão é a crítica. Exalta-se, não diante das posições dos corpos, mas diante do rigor e do brilho das demonstrações. O erotismo de outros filósofos libertinos do século XVIII não tem o exagero de Sade, porém não é menos frio e racional: não é uma paixão, mas uma filosofia”.
“(...) Para uns a liberdade erótica é sinônimo de imaginação e paixão, para outros significa uma solução racional dos problemas das relações físicas entre os sexos. Bataille acreditava que a transgressão era condição e também essência do erotismo; a nova moral sexual acredita que se forem suprimidas ou atenuadas as proibições, a transgressão erótica se atenuará ou desaparecerá. Blake disse: “Nós dois lemos a Biblia noite e dia, mas tu lês negro onde eu lei branco”
“O sonho de uma comunidade igualitária e livre, herança comum de Rousseau, reaparce entre os românticos alemães, aliado como em Holderlin ao amor, só que agora de um modo mais violento e denunciador. Todos estes poetas vêem o amor como transgressão social e exaltam a mulher não apenas como objeto, mas como sujeito erótico”.
“A figura de Wiliam Blake condensa as contradições da primeira geração romântica. Condensa-se e as faz rebentar uma explosão que vai além do romantismo. Foi um verdadeiro romântico? O custo da natureza, que é um dos rasgos da poesia romântica, não aparece em sua obra. Acreditava que o mundo da imaginação é o mundo da eternidade, enquanto o mundo da geração é finito e temporal. Esta idéia aproxima-o dos gnósticos e dos iluminados, mas seu amor ao corpo, sua exaltação do desejo erótico e do prazer – aquele que deseja e não satisfaz seu desejo engendra pestilência – o colocam contra a tradição neoplatonica. Embora se chamasse adorador de Cristo, foi cristão? Seu Cristo não é o Cristo dos cristãos: é um titã nu, que se banha no mar radioso da energia erótica. Um demiurgo, para quem imaginar e agir, desejar e satisfazer o desejo são uma única e mesma coisa. Seu Cristo lembra mais o Satã de The marriagé of Heaven na Hell (1793); seu corpo é como uma gigantesca nuvem iluminada por relâmpagos incessantes: a escritura chamejante dos provérbios do Inferno”.
“A influência dos gnósticos, dos cabalistas, dos alquimistas e de outras tendências marginais dos séculos XVII e XVIII foi muito profunda, não entre os românticos alemães, como no próprio Goethe e seu circulo. A mesma coisa deve-se dizer dos românticos ingleses e, claro, dos franceses. De seu lado, a tradução ocultista dos séculos XVII e XVIII entronca-se com vários movimentos da critica social e revolucionária, simultaneamente libertária e libertina. A crença na analogia universal está tingida de erotismo: os corpos e as almas unem-se e separam-se, regidos pelas mesmas leis de atração e repulsão que governam as conjunções e disjunções dos astros e das substancias materiais. Um erotismo astrológico e um erotismo alquímico; igualmente um erotismo subversivo: a atração erótica rompe as leis sociais e une os corpos sem distinção de classes e hierarquias. A astrologia erótica oferece um modelo de ordem social fundamentado na harmonia cósmica e oposto à ordem dos privilégios, da força e da autoridade; a alquimia erótica – união dos princípios contrários, o masculino e o feminino, e sua transformação em outro corpo – é uma metáfora das trocas, separações, uniões e conversões das substancias sociais (as classes), durante uma revolução. Correspondências verbais: a revolução é um crisol no qual se produz a amalgama dos diferentes membros do corpo social e sua transubstanciação em outro corpo. O erotismo do século XVIII foi um erotismo revolucionário de raízes ocultistas, tal como pode ver nos romances libertinos de Restif de La Bretonne. Do misticismo erótico de um Restif de La Bretonne à concepção de uma sociedade movida pelo sol da atração apaixonada, não havia senão um passo. Esse passo chama-se Charles Fourier. A figura de Fourier é central tanto na história da poesia francesa como na do movimento revolucionário. Não é menos atual que Marx (e suspeito que começa a sê-lo mais). Fourier pensa, como Marx, que a sociedade é regida pela força, a coerção e a mentira, mas diferentemente de Marx, acredita ser a atração apaixonada, o desejo, o que une os homens. A palavra desejo não figura no vocabulário de Marx. Uma omissão que equivale a uma mutilação do homem. Para Fourier, mudar a sociedade significa liberá-la dos obstáculos que impedem a operação das leis da atração apaixonada. Esse leis são leis astronômicas, psicológicas e matemáticas, mas são também leis literárias, poéticas”.
“(...) Fourier sustenta que o desejo não é necessariamente mortífero, como afirma Sade, nem a sociedade é repressiva por natureza, como pensa Freud. Afirmar a bondade do prazer é escandaloso: Sade e Freud confirmam de certo modo – o modo negativo – a visão pessimista do cristianismo judaico (...) Baudelaire reprova Fourier por não ter escrito uma poética, isto é, reprova-o por não ser Baudelaire. Para Fourier, o sistema do universo é a chave do sistema social; para Baudelaire, o sistema do universo é o modelo da criação poética”.
“Novalis havia dito: tocar o corpo de uma mulher é tocar o céu. E Fourier: as paixões são matemáticas animadas”.
“O espanhol Cernuda vê no prazer não só uma explosão corporal como uma critica moral e política da sociedade cristã e burguesa: abaixo estátuas anônimas, preceitos de névoa, uma chispa daqueles prazeres brilha na hora vingativa, seu fulgor por destruir vosso mundo”.
“(...) O capitalismo dessagrou o corpo: deixou de ser o campo de batalha entre os anhos e os demônios e transformou-se em um instrumento de trabalho. O corpo foi uma força de produção. A concepção do corpo como força de trabalho conduziu imediatamente à humilhação do corpo como fonte de prazer. O ascetismo mudou de signo: não foi um método para ganhar o céu, mas uma técnica para aumentar a produtividade. O prazer é um desperdício, a sensualidade, uma perturbação. A condenação do prazer abrangeu também a imaginação, pois o corpo não é apenas um manancial de sensações, mas também de imagens. As desordens da imaginação não são menos perigosas para a produção e seu rendimento perfeito que os abalos físicos do prazer sensual. Em nome do futuro, completou-se a censura do corpo com a mutilação dos poderes poéticos do homem. Assim a rebelião do corpo é também a da imaginação. Ambas negam o tempo linear: seus valores são os do presente. O corpo e a imaginação ignoram o futuro: as sensações são a abolição do tempo no instantâneo, as imagens do desejo dissolvem passado e futuro em um presente sem datas. É o retorno ao principio do principio, à sensibilidade e à paixão dos românticos. A ressurreição do corpo talvez seja um aviso de que o homem recuperará em algum tempo a sabedoria perdida. Pois o corpo não nega somente o futuro: é um caminho para o presente, para esse agora onde a vida e a morte são as duas metades de uma mesma esfera”.
OCTÁVIO PAZ – Poeta, escritor e diplomata mexicano, Octavio Paz (1914-1998), foi Prêmio Nobel de Literatura de 1990, foi integrante do Movimento Surrealista, sendo autor de mais de 20 livros de poesia e incontáveis de ensaios de literatura, arte, cultura e política. Os textos aqui publicados foram retirados do seu livro “Os filhos do Barro”, traduzido pela poeta Olga Savary.
FONTE:
PAZ, Octavio. Os filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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