segunda-feira, maio 26, 2008

PABLO NERUDA



Imagem: Venus Anadiomene, 1808, do pintor neoclássico francês Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867)

NERUDERÓTICO – PABLO NERUDA

CAVALHEIRO SÓ

Os jovens homossexuais e as mocinhas amorosas,
E as longas viúvas que sofrem de insônia delirante,
E as jovens senhoras há trinta horas emprenhadas,
E os gatos roufenhos que atravessam meu jardim em trevas,
Como um colar de palpitantes ostras sexuais
Rodeiam minha casa solitária,
Inimigos jurados de minha alma,
Conspiradores em traje de dormir,
Que trocaram por senha grandes beijos espessos.
O verão radiante conduz os namorados
Em uniformes regimentos melancólicos
Feitos de gordos magros e alegres tristes pares:
Sob os coqueiros elegantes, junto ao mar e à lua,
Há uma vida contínua de calças e galinhas,
Um rumor de meias de seda acariciadas,
E seios femininos a brilhar como dois olhos.
O pequeno empregado, depois de tanta coisa,
Depois do tédio semanal e das novelas lidas na cama todas noite,
Seduziu sua vizinha inapelavelmente
E a leva agora a cinemas miseráveis
Onde os heróis são potros ou são príncipes apaixonados,
E lhe acaricia as pernas, véu macio,
Com suas mãos ardentes, úmidas que cheiram a cigarro.
As tardes do sedutor e as noites dos esposos
Se unem, dois lençóis que me sepultam,
E as horas de após almoço em que os jovens estudantes
E as jovens estudantes, e os padres se masturbam,
E os animais fornicam sem rodeios
E as abelhas cheiram a sangue e zumbem coléricas as moscas,
E os primos brincam de estranho jeito com as primas,
E os médicos olham com fúria o marido da jovem paciente,
E as horas da manhã nas quais, como que por descuido, o professor cumpre os seus deveres conjugais e desjejua,
E inda mais os adúlteros, que com amor verdadeiro e se amam sobre leitos altos, amplos como embarcações:
Seguramente, eternamente me rodeia
Este respiratório e enredado grande bosque
Com grandes flores e com dentaduras
E raízes negras em forma de unhas e sapatos.

A CANÇÃO DESESPERADA

Aparece tua recordação da noite em que estou.
O rio reúne-se ao mar seu lamento obstinado.
Abandonado como o impulso das auroras.
É a hora de partir, oh abandonado!
Sobre meu coração chovem frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cova de náufragos!
Em ti se ajuntaram as guerras e os vôos.
De ti alcançaram as asas dos pássaros do canto.
Tudo que o bebeste, como a distância.
Como o mar, como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio!
Era a alegre hora do assalto e o beijo.
A hora do estupor que ardia como um faro.
Ansiedade de piloto, fúria de um búzio cego
túrgida embriaguez de amor, tudo em ti foi naufrágio!
Na infância de nevoa minha alma alada e ferida.
Descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!
Tu senti-se a dor e te agarraste ao desejo.
Caiu-te uma tristeza, tudo em ti foi naufrágio!
Fiz retroceder a muralha de sombra.
andei mais adiante do desejo e do ato.
Oh carne, carne minha, mulher que amei e perdi,
e em ti nesta hora úmida, evoco e faço o canto.
Como um vaso guardando a infinita ternura,
e o infinito olvido te quebrou como a um vaso.
Era a negra, negra solidão das ilhas,
e ali, mulher do amor, me acolheram os teus braços.
Era a sede e a fome, e tu foste à fruta.
Era o duelo e as ruínas, e tu foste o milagre.
Ah mulher, não sei como pode me conter
na terra de tua alma, e na cruz de teus braços!
Meu desejo por ti foi o mais terrível e curto,
o mais revolto e ébrio, o mais tirante e ávido.
Cemitério de beijos,existe fogo em tuas tumbas,
e os racimos ainda ardem picotados pelos pássaros.
Oh a boca mordida, oh os beijados membros,
oh os famintos dentes, oh os corpos traçados.
Oh a cópula louca da esperança e esforço
em que nos ajuntamos e nos desesperamos.
E a ternura, leve como a água e a farinha.
E a palavra apenas começada nos lábios.
Esse foi meu destino e nele navegou o meu anseio,
e nele caiu meu anseio, tudo em ti foi naufrágio!
Oh imundice dos escombros, que em ti tudo caía,
que a dor não exprimia, que ondas não te afogaram.
De tombo em tombo inda chamas-te e cantas-te
de pé como um marinheiro na proa de um barco.
Ainda floriste em cantos, ainda rompes-te nas
correntes.
Oh sentina dos escombros, poço aberto e amargo.
Pálido búzio cego, desventurado desgraçado,
descobridor perdido, tudo em ti foi naufrágio!
É a hora de partir, a dura e fria hora
que a noite sujeita a todos seus horários.
O cinturão ruidoso do mar da cidade da costa.
Surgem frias estrelas, emigram negros pássaros.
Abandonado como o impulso das auroras.
Somente a sombra tremula se retorce em minhas mãos.
Ah mais além de tudo. Ah mais além de tudo.
É a hora de partir. Oh abandonado.

CUERPO DE MUJER

Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.
Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.
Pero cae la hora de la venganza, y te amo.
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
¡Ah los vasos del pecho! ¡Ah los ojos de ausencia!
¡Ah las rosas del pubis! ¡Ah tu voz lenta y triste!
Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia si límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.

POEMA XV

Gosto quando te calas porque estás como ausente,
e me ouves de longe, minha voz não te toca.
Parece que os olhos tivessem de ti voado
e parece que um beijo te fechara a boca.
Como todas as coisas estão cheias da minha alma
emerge das coisas, cheia da minha alma.
Borboleta de sonho, pareces com minha alma,
e te pareces com a palavra melancolia.
Gosto de ti quando calas e estás como distante.
E estás como que te queixando, borboleta em arrulho.
E me ouves de longe, e a minha voz não te alcança:
Deixa-me que me cale com o silêncio teu.
Deixa-me que te fale também com o teu silêncio
claro como uma lâmpada, simples como um anel.
És como a noite, calada e constelada.
Teu silêncio é de estrela, tão longinqüo e singelo.
Gosto de ti quando calas porque estás como ausente.
Distante e dolorosa como se tivesses morrido.
Uma palavra então, um sorriso bastam.
E eu estou alegre, alegre de que não seja verdade.

MULHER

Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e
dois corpos por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia
corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

OS TEUS PÉS

Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.
Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.
Tua cintura e teus seios,
a duplicada purpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram vôo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.
Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

A DANÇA

Não te amo como se fosses a rosa de sal, topázio
Ou flechas de cravos que propagam o fogo:
Te amo como se amam certas coisas obscuras,
Secretamente, entre a sombra e a alma.
Te amo como a planta que não floresce e leva
Dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
E graças a teu amor vive escuro em meu corpo
O apertado aroma que ascendeu da terra.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
Te amo assim diretamente sem problemas nem orgulho:
Assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
Senão assim deste modo que não sou nem és,
Tão perto que tua mão sobre o meu peito é minha,
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
Antes de amar-te, amor, nada era meu:
Vacilei pelas ruas e as coisas.
Nada contava nem tinha nome.
O mundo era do ar que esperava
E conheci salões cinzentos,
Túneis habitados pela lua,
Hangares cruéis que se dependiam,
Perguntas que insistiam na areia.
Tudo estava vazio, morto e mudo.
Caído, abandonado, decaído,
Tudo era inalienavelmente alheio.
Tudo era dos outros e de ninguém,
Até que tua beleza e tua pobreza
De dádivas encheram o outono.

O INSETO

Das tuas ancas aos teus pés
quero fazer uma longa viagem.
Sou menor que um inseto.
Percorro estas colinas,
são da cor da aveia,
têm trilhos estreitos
que só eu conheço,
centimetros queimados,
pálidas perspectivas.
Há aqui um monte.
Nunca dele sairei.
Oh que musgo gigante!
E uma cratera, uma rosa
de fogo umedecido!
Pelas tuas pernas desço
tecendo uma espiral
ou adormecendo na viagem
e alcanço os teus joelhos
duma dureza redonda
como os ásperos cumes
dum claro continente.
Para teus pés resvalo
para as oito aberturas
dos teus dedos agudos,
lentos, peninsulares,
e deles para o vazio
do lençol branco
caio, procurando cego
e faminto teu contorno
de vaso escaldante!

A NOITE NA ILHA

Dormi contigo a noite inteira junto do mar, na ilha.
Selvagem e doce eras entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Talvez bem tarde nossos
sonos se uniram na altura e no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento move,
embaixo como raízes vermelhas que se tocam.
Talvez teu sono se separou do meu e pelo mar escuro
me procurava como antes, quando nem existias,
quando sem te enxergar naveguei a teu lado
e teus olhos buscavam o que agora - pão,
vinho, amor e cólera - te dou, cheias as mãos,
porque tu és a taça que só esperava
os dons da minha vida.
Dormi junto contigo a noite inteira,
enquanto a escura terra gira com vivos e com mortos,
de repente desperto e no meio da sombra meu braço
rodeava tua cintura.
Nem a noite nem o sonho puderam separar-nos.
Dormi contigo, amor, despertei, e tua boca
saída de teu sono me deu o sabor da terra,
de água-marinha, de algas, de tua íntima vida,
e recebi teu beijo molhado pela aurora
como se me chegasse do mar que nos rodeia.

SONETO XVI

Amo o pedaço de terra que és tu,
Porque das campinas planetárias
Outra estrela não tenho. tu repetes
A multiplicação do universo.
Teus amplos olhos são luz que tenho
Das constelações derrotadas,
Tua pele palpita como os caminhos.
Que percorre na chuva o meteoro.
De tanta luz foram para mim teus quadris,
De todo o sol tua boca profunda e sua delícia,
De tanta luz ardente como o mel na sombra
Teu corpo queimado por longos raios rubros,
E assim percorro o fogo de tua forma beijando-te,
Pequena e planetária, pomba e geografia.

DE NOITE AMADA

De noite, amada, amarra teu coração ao meu
e que eles no sonho derrotem
as trevas como um duplo tambor
combatendo no bosque
contra o espesso muro das folhas molhadas.
Noturna travessia, brasa negra do sonho.
Interceptando o fio das uvas terrestres
com pontualidade de um trem descabelado
que sombra e pedras frias sem cessar arrastasse.
Por isso, amor, amarra-me ao movimento puro,
à tenacidade que em teu peito bate.
Com as asas de um cisne submergido,
para que as perguntas estreladas do céu
responda nosso sonho com uma só chave,
com uma só porta fechada pela sombra.

PABLO NERUDA (104-1973) – Este foi o nome com que se notabilizou o poeta chileno Neftali Ricardo Reys, premio Nobel de literatura de 1971. Diplomata de carreira, vivia na Espanha por ocasião da Guerra Civil, que lhe inspiraria um livro de poemas politicamente engajados, “Espanha no coração”, em 1936. sua ulterior filiação ao Partido Comunista o levou a cultivar regularmente esse tipo de poesia, cuja expressão mais ambiciosa está no “Canto Geral”, de 1950. Bem antes disso, Neruda já cultivava o lirismo amoroso em obras como “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, de 1924. Mas o ponto mais alto de sua dicção lírica, na qual a pletora metafórica da tradição de Gongora se enriquece com as surpresas da imagem surrealista, se encontra no telurismo de “Residência na terra”, de 1933 e na concretude da poesia de coisas das “Odes elementares”, de 1954.

FONTES:
AGUIRRE, Margarita. Genio y figura de Pablo Neruda. Buenos Aires: Eudeba, 1997.
CARPEAUX, Otto Maria. Historia da literatura ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1978.
DE TORRE, Guillermo. História das literaturas de vanguarda. Lisboa: Presença, 1972.
EDWARDS, Jorge. Adeus poeta: niografia de Pablo Neruda. São Paulo: Siciliano, 1993.
FACIO, Sara. Pablo Neruda. Argentina: La Azotea, 1988.
FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda. Grandes vozes liricas hispano-americanas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
FRANCO, Jean. Historia de la literatura hispanoamericana: a partir de la independencia. Barcelona: Ariel, 1998
GRUNFELD, Mihai G. Antologia de la poesia latinoamericana de vanguardia (1916-1935). Madrid: Hiperion, 1995.
PAES, José Paulo. Poesia erótica. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SANCHEZ, Luis Alberto. Historia comparada de las literaturas americanas: del vanguardismo a nuestros dias. Buenos Aires: Losada, 1973.
SKIRIUS, John (comp). El ensayo hispano-americano del siglo XX. 4. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1997.
TEITELBOIM, Volodia. Neruda. Mexico: Hermes, 1996.
URRUTIA, Matilde. Minha Vida com Pablo Neruda. São Paulo: Bertrand, 1990.
VERANI, Hugo J. Narrativa vanguardista hispanoamericana. Mexico: UNAM, 1996
YURKIEVICH, Saul. Atraves de la trama: sobre vanguardias literarias y otras concomitancias. Barcelona: Muchnik, 1984.

VEJA MAIS:
CRÔNICA DE AMOR
GUIA DE POESIA
PALESTRA: CIDADANIA NAS ESCOLAS
BRINCARTE
RÁDIO TATARITARITATÁ – LIGUE O SOM & CURTA!
PUBLIQUE SEU LIVRO – CONSÓRCIO NASCENTE
TCC – FAÇA SEU TCC SEM TRAUMAS