terça-feira, janeiro 15, 2008



Imagem: Susanna Bathing, 1904, do pintor e escultor simbolista/expressionista alemão Franz Von Stuck (1863-1928).

AO REDOR DA PIRA ONDE QUEIMA O AMOR

II

O amor comungando o misterioso encanto da paixão

Luiz Alberto Machado

Após a iniciação de seu beijo eu me sentia confirmado na minha sina de menino que gosta de sonhar. Foi quando pude rever todas as instâncias de minha formação pelo amor, desde a professora da infância, das paqueras tímidas juvenis, da figura da mãe sempre presente, das paixões idealizadas e não correspondidas, de todas as redes sentimentais que me vira envolvido por toda minha existência. Como soubera? Poderes de deusa. Nossa! Como era firme e como deixava claro que tudo que eu pensava, ela percebia. E como sempre fora tímido, era difícil fitar seus olhos firmes e acesos mostrando-me as coisas dos sonhos e da vida. Era de arrepiar. E quando dei por mim, ela fitava cada milímetro de mim no enleio do "Sonho de amor" de Liszt. Quanta manifestação interagindo entre o meu e o seu desejo.

Foi assim, percebendo o meu ar indefeso, que ela alisou meus cabelos, beijou meus olhos, tateou meu rosto e os detalhes da minha fisionomia, até encostar seus lábios nos meus, passando sua língua faceira a se esfregar na entrega de todos os seus segredos mais remotos desde a longínqua infância, da passageira adolescência e dos amores que vertera por noites sangradas de infinitas solidões.

Se ela sabia de mim, queria que soubesse dela. E naquele beijo contara-me como tudo se passara com ela. Eu chorei, choramos juntos, recolhi suas lágrimas e nos dissemos de amor eterno enquanto a minha carne se via doendo com a sua sofrência.

Por um instante temi perdê-la depois desse encontro. Como me apavorei com esta idéia. Ela percebeu e jurou-me, com um simples olhar candente, um amor eterno. E beijou minhas faces como quem mostra o vôo dos pássaros, a fundura oceânica, a semente da vida, o rumo dos ventos em todas as direções.

Remexera minhas idéias, demovendo o temor que infligira de sua partida depois daquele encontro, restituindo uma esperança nunca tida e possível mais adiante.

Mas insistia no meu temor e ela beijou-me os ouvidos como quem semeia a raiz de dulcamara para o elixir do amor de nossa paixão endovenosa. Foi quando se apossou do meu dedo anular direito, mordiscou, no começo, levemente, depois insistiu até brotar meu sangue vivo. Fez o mesmo no dela e depois emendou, um ao outro, como se consumasse uma união, o anel de nossas vidas. E com sua mão rojadora foi puindo a carícia de sua táctil habilidade pela minha nuca, pelo pescoço, tórax, muque, braços, pulsos, mãos, dedos, coxas, pernas e pés como quem se apropria de todos os meus músculos relaxados, todos os meus nervos em polvorosa, toda a minha carne incendiada, acedendo uma vitalidade rediviva nunca dantes possuída.

Com isso, ela reiterava que estaria nua ao meu lado em qualquer circunstância. E eu jamais acreditaria nisso, saberia sempre que seria mais um desses momentos perfunctórios pela recompensa da entrega efêmera a que nos submetíamos naquele momento. Ela parecia jurar com seu olhar fixo em mim. Percebia a minha descrença, por isso beijou-me novamente a boca com o desejo no enroscamento do réptil no afã de escalar uma árvore, à mistura de arroz com a semente de sésamo - os manjares do amor -, com a mescla de leite e água e a ciência das sessenta e quatro artes do Kama Sutra.

Nesse beijo pude ter ciência do ácido, do amargo, do doce, do salgado, do que nasce e do que agoniza. Ela queria que eu soubesse que o nosso amor de agora não seria apenas de hoje, mas de todo o sempre. E para melhor persuadir-me dessa loucura, mostrou-me do fogo de Minarã e do Urubu-rei na lareira dos caingangues, se dizendo Iaravi pelas cintilantes labaredas da magnifíca luz de sua aura vestal ameríndia, os seus fulgores deslumbrantes que propagava o incêndio na minha pirexia, incitando-me a ser Fiietô, um Caiucucrê capaz de roubar o fogo de todas as coisas, me fazendo acreditar ser o único homem do universo.

Quanto privilégio me fora dado naquele momento com a sua nudez radiante, a ponto de me bestificar com sua figura longílinea, incendiária, ah, minha la Belle! Ela surpreendia a pequena área do meu coração, deixando-me as defesas orgânicas desguarnecidas, escamoteando minhas certezas e deixando-me babando por um contato de quarto ou quintos graus exagerados na sua beleza ostensiva e me levando desmiolado à custa de seus truques sobre a mendicância dos meus quereres.

Por mais que soubesse de mim, eu estava rendido, permitindo que me levasse onde quisesse com a sua astúcia adorável.

Nesse instante me olhou terna, adernando os olhos, ih! Algo aconteceria. E ao levantá-los lentamente com seu olhar voraz, aproximou a mão direita ao meu peito e sentindo o circuito que descarregava em meu corpo, cravou os dedos, rasgou-me a carne apossando-se do meu coração rendido. Arrancou-me do tronco, bruscamente, levando o pulsante motor da minha vida até a boca para beijá-lo imensamente, venerando minha vida. E enquanto eu desfalecia, ela ritualizava uma paixão sórdida sobre a minha dor iniciada.

Quando então, fitando-me ainda mais severa, com a outra mão sobre o seu próprio peito, cravou os dedos, rasgou as carnes e arrancou com a mesma voracidade o seu coração e trouxe até a minha boca, exigindo-me beijá-lo, ao que, obediente, depositei toda minha terna veneração.

Logo após, colocou seu coração no meu peito e cerziu minha carne com um carinho de deusa mágica, e colocou o meu no seu peito, mostrando-me, unidos por sentimentos e destinos. E devolveu-me a vida e a esperança e pude enternecer com seu gesto de amor.

A partir de então, meu coração passou a ser seu; e o seu, meu, ambos, mutuamente, na capacidade total de amar.

© Luiz Alberto Machado. Direitos Reservados.

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