terça-feira, novembro 30, 2010
GILBERTO MENDONÇA TELES
Imagem: Reclining Nude, 1897, do pintor do Pós-Impressionismo francês Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901).
O ERÓTICO DA HORA ABERTA DE GILBERTO MENDONÇA TELES
ERÓTICA
I
Cada dia eu me convenço
Mais de que é preciso achar
Alguma fórmula, um jeito,
Talvez um pouco de açúcar,
Para dizer certas coisas,
Certas palavras tabus
Que o povo vai cortejando
Numa paixão dos diabos.
Penar talvez jamais penes
Na incontinência de um órgão
Cujo som penetra a fruta
Como um verme em fruição.
Se acabo de pôr a seta
No alvo que surge aqui,
É que por certo me inspira
Alguma concha escarlate,
Uma secção, seus arcanos,
Seus privilégios de anel,
Alguma forma concreta
Embora ambígua e volúvel.
Talvez um dia resolva
Me armar de faca e revolver,
Dar uns tiros para cima,
Desfolhar um bem-me-quer,
Mandar buscar uma moça,
Gabar-lhe as ancas morenas,
Tirar-lhe a fome e o regímen,
Dar-lhe contudo e aliás.
E depois de muitas festas,
De algumas drogas e álcool,
Abrir o vão da janela,
Mostrar a colcha e o lençol.
II
Quero por no gráfico
Um poema erótico
E medir as curvas
De seu corpo e alma.
Pesquisar seu número
De múrmuros líricos,
Ver a sensual-
Idade as palavras:
Seja sob máscaras
Ou desnudas, límpidas;
Seja de grinalda
No calor da orgia.
Ler as estatísticas
De umas pernas jâmbicas,
Seu nível de usura,
Seu botão de amêndoa.
Projetar seus índices
De sinais datílicos,
Registrar as linhas
Dos quadris e ancas,
Definir as fórmulas
Dos ais e dos êxtases,
Suas mais ocultas
Vibrações de amor.
E vê-las sem lógica
Nas zonas erógenas,
Trocaicas e livres
Na ponta da língua.
Não estou querendo
A palavra virgem,
Tímica e pudica,
A que sempre pica
A forma da mão.
Mas darei a vida,
O que mais estimo
- darei ilhas, istmo,
O melhor do ritmo
Que eu souber compor,
Para estar três dias
(uma noite ao menos)
Ilhado no hotel,
Vivendo a poesia
Desse corpo-livro
No intimo escritório
Da melhor palavra
Da mulher-palavra.
Quero a que me faça
Andar pelos pastos
Como um marruá
Nos ermos goianos,
Bebendo o silêncio
E babando o gozo
De berrar bem alto
O seu nome:
“Mu-ú”...
E lamber por dentro
A vogal e o dígrafo
Com seus pelos úmidos,
Ruminando a flor
De uma consoante
Que vibra na ponta
Da língua e se abre
Para pôr no gráfico
Apenas a imagem
De um poema erótico.
SEARA
Ó fêmea, ó companheira de destino,
O fruto da alegria sazonou
Na temporada em que te conheci.
E um cheiro de seara, um cheiro bom de seiva,
De sêmen, rescendendo afirmações da vida,
Cresceu como a manhã dentro da noite imensa,
Acariciando o olfato e excitando os sentidos
Mais puros das palavras.
A terra abriu o ventre amorenado
À volúpia da relha fecundante,
E dos sulcos arais e das leivas do solo
Brotaram de repente os cachos suculentos
Das frutas mais sabidas.
Nos caules balançavam, já maduras,
As espigas do amor.
Era a safra do amor, quando te conheci.
ELA
Ela surgiu, qual Vênus, de alva espuma,
Da espuma de meu sonho alcandorado,
Do sorriso suavíssimo de alguma
Onda inquieta de um mar esverdeado.
Ela vibrou em mim. Foi como um brado
Que se eleva pelo ar, depois se esfuma,
Deixando um som sereno, envolto numa
Deliciosa impressão de ser amado.
E ela é bravia como um mar sem calma,
Serena como um pensamento langue,
Alegre e triste como uma saudade;
Ela canta e suspira na minh´alma,
Ela geme, sorrindo, no meu sangue
Num paradoxo de felicidade.
DÁDIVA (fragmento)
Tangente à solidão do quarto
Insistes harmoniosa e propagas
Teu corpo de animal noturno e belo.
Sol e água, te derramas na cama
E és anca, braços, pernas, a dura
Inquietação da noite interrompida.
É preciso invadir a unidade
Perfeita de teu ventre. É preciso
Respirar teus cabelos repousados [...].
NUPCIAL
Um dia as minhas mãos de chumbo
E sortilégio se estenderão
Isentas
Como uma flor madura ou gesto
Repentino ao sol fotografado.
Os meus dedos sem rumo
Habitarão teu reino fechado
Sobre o mar numeroso e noturno.
E as tuas mãos sem nunca
Deslizarão mil dádivas sobre
O tempo prescrito e decifrado.
Teu corpo de pelúcia e espuma,
Palpitante e liberto do mármore,
Do sal e dos vestidos imperecíveis,
Teu corpo sereno, muito
Além das tempestades, sub-
Merso e nupcial como os peixes marinhos,
Teu corpo em plenitude
Me estenderá seus vínculos
No idioma das águas.
E seremos destino de afogados,
Amantes das profundezas, noivos
Cujos gritos já trêmulos
Dormirão como as algas malferidas
De tanto aroma e claridade.
TRANSPARÊNCIA
Ela veio chegando de mansinho
E entrou na minha casa de repente:
- “Sou aquela que traz vida e carinho
Para teu corpo carinhoso e quente”.
Noutro dia, no afã da madrugada
Ela veio chegando de mansinho:
- “Sou aquela que não te vai dar nada
Mas que sabe aplainar o teu caminho”.
Bebi de sua fonte, de seu vinho
E vi que para além de uma promessa
Ela veio chegando de mansinho:
- “Sou aquela que te ama e te atravessa”.
Hoje, na transparência ou na espessura
Do que consigo ver no torvelinho,
Sei que por mais que eu fuja da figura
Ela me vem chegando de mansinho.
LOOPING
O amor me chama da Europa
O amor me chama da América
Do mais íntimo Brasil
O amor me chama.
E me queima
Labareda
Lingua de fogo
Conversa desdobrada no verão.
Do mais alto da Sears
Estendo caprichoso a mão esquerda
(que nunca fica sossegada)
E acaricio a mulher do lago Michigan
Aliso seus cabelos no Atlântico
E me deixo levar pela ternura
De sua luz mediterrânea.
E do mais alto de mim
De meus abismos
Vou-me estirando inteiro
Alma
Dentes
Músculos
Enquanto a mão direita vai mapeando
Golfos
Angras
Ilhas
Esses recôncavos
Da América Central
Tão feiticeira
Da América do Sul
Tão feminina.
À PRIMEIRA VISTA
Ela sentou-se ali, sentou-se e disse
Que o amor, a morte, a poesia, tudo
Era uma coisa só, sem rei nem vice,
Uma forma de ser sem conteúdo.
Algo sem cor e margem, puro centro
Essência de beleza entressonhada:
A flor se abrindo inteira para dentro
E o dentro se fechando em coisa alada.
Não se mostrava plena, mas em tomo,
Na sua meia lua imaginal:
Beira de poço, acostamento, gomo
De laranja madura no quintal.
Ao alcance da mão, um barco à vela
Navegava em si mesmo o seu percurso:
Viagem de recreio na parcela
Do que ficou calado no discurso.
Tudo que vi não vi, mas o não-visto
É que se pensa e guarda – o todo, as partes:
Alegoria que não tem registo,,
Ordem volúvel nos confins das artes.
INDA OUTRA VEZ...
Inda outra vez, beijar-te, como outrora,
Ao sol dos dias flóridos de outono,
Quando a tua alma, tímida e sonora,
Sorria alegre, sem vaidade e entono.
Inda outra vez, possuir-te no abandono
Dos campos, sob o céu em plena flora,
E nos teus olhos pálidos de sono,
Pousar minh´alma sonolenta agora.
Inda outra vez, falar-te, com desejo,
Sentido a tua alma, sôfrega e faminta,
Entrar-me pela boca por um beijo.
E, sonhando, outra vez, ter-te nos braços,
Tentando reavivar a chama extinta
Do antigo e ardente amor feito em pedaços.
DESEJO
Alma de Messalina, alma sedenta sois.
Em vossa artéria, ardente, a lascívia circula
Deixando em fogo a carne e indo lançar, depois,
A sensação na vossa intrínseca medula.
O amor vos encendeia os olhos (esses dois
Reflexos de volúpia) e em vossa alma acumula
A sede do prazer insaciavel, pois
Vai despertando em vós libidinosa gula.
Alma de sensitiva, o vosso corpo explode
Em sísmico tremor; uma explosão sacode
O vosso seio, quando a minha mão o toma.
Quando eu o tomo, assim em minhas mãos, sacode-o
Em lúbrico delírio, um misto de amor e ódio
E um fluxo de luxuria ao vosso olhar assoma.
ETC
Com ou sem máscara
Quero dizer=te que me sento ao teu lado
Numa canção intermitente,
Alguma chuva às avessas,
Dessas que caem por dentro,
Coisa órfica, linda e esotérica,
E que te despe do teu puro cetim,
Das tuas formas finas e tácteis
Que vão nascendo dentro de mim.
Nada de lirismo, de simples ternurismo!
Quero é fundar contigo o etceterismo,
Único termo capaz de conter esses leões,
Essas feras disfarçadas na sala,
Onde a Poesia finge de Cabala,
Mas é muito, muitas vezes maior
Que tudo aquilo que somente os deuses
Podem saber de cor.
O BAILE
“Não faça assim e para que comigo”
Dizia a moça à beira do Araguaia,
Estudante da vida num dos cursos
Mais livre do lugar.
“Posso dançar contigo qualquer toque
De viola ou sanfona, a noite inteira.
Só vos peço uma trégua – À meia noite
Vou-me fantasiar”.
E assim, como quem cumpre o seu destino,
O ritmo de seu corpo dedilhava
Meu senso de carinho, num chamego
Difícil de narrar.
Colados, corpo a corpo, deslizamos
Na sensualidade dos minutos,
As pernas entre as pernas retesadas
No jogo singular.
Mas quando à meia-noite eu quis beijá-la,
Seus olhos se abrasaram suplicantes:
“Não faça assim e para que comigo”
E se pôs a chorar.
E foi-se desprendendo dos meus braços,
Foi-se fazendo fina e vaporosa
E, arisca – peixe ou lontra -, de repente,
Se fez renda e luar.
Mas eu segui dançando enfeitiçado,
Os braços apertando a pura ausência.
E até hoje se conta que alguém dança
Nas lendas do lugar.
SOMA
Vou contornando a linha de teu ventre
Como quem passa perto de quem ama.
Tenho ante os olhos tua imagem e entre
Meus lábios os tecidos desta cama.
Vou enrolando os fios de teus cabelos
Como quem fia o amor nalguma roca.
Entre meus dentes há vogais e pelos
E esta insatisfação que te provoca.
E cada vez vou-me deixando inteiro,
Corpo e alma, no centro desta soma:
Toda a sofreguidão de um brasileiro
Na sensualidade do idioma.
DEGRAUS
Você é mesmo uma menina luminosa
Pulando nos degraus do meu verso
Lumilâmpada
Lumilépida
Lumilímpida
Lunilógica
Lumilúmina
Luxeluz
Uma menina luminosa que atravessa
Lumilâmina
Lumilúcida
A lualinda de uma luz acendida
No meu amor lusíada.
DO PONTO ATRÁS
É na ponta dos dedos (peixe e polvo)
Que tateio teu corpo – esses sinais,
Algas marinhas, esta rima em ulva,
Este navio que ficou sem cais.
É na ponta da língua que dissolvo
A essência de teu nome – essas vogais,
Essas letras macias como vulva,
Como coisas que como e quero mais.
É na ponta da lança que te invoco
E te possuo aqui, no tom discreto
Das sombras se aninhando nos quadris.
E é na ponta dos pés que metrifico
Compondo o teu silêncio – este soneto,
Estas cenas de amor que pedem bis.
HISTÓRIA (fragmento)
[...] só o teu corpo pode dar sentido
À alegre alegoria do poema.
[...] só do teu corpo se origina o traço
Que recompõe no amor a poesia.
AQUÁRIO DE HAICAIS
Ai, cai neste aquário,
Para possuir meu corpo
Liquefeito e vário.
TATILISMO (fragmento)
[...] Pele a pele,
Conservo o teu desejo.
Palmo a palmo,
Manuseio teu ritmo, e no alvoroço,
Viajamos na sombra o nosso impulso,
O amor vai-se fazendo corpo a corpo
Na espessura da vida.
LOCUS AMOENUS (fragmento)
[...] O que não se explica é este jeito de sombra,
Este balanço do corpo nos atalhos
E este sestro de chupar a ponta da língua
E extrair a polpa de uma fruta
No meio do cerrado.
É daí que aprecio melhor
O pisco repentino de uma estrela.
GILBERTO MENDONÇA TELES - O poeta, advogado e professor universitário de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, Gilberto Mendonça Teles, é formado em Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia da Universidade de Goiás e, também, bacharel em Direito na mesma universidade. Defendeu a tese de doutorado em Letras, Drummond: A Estilística da Repetição, publicada em 1970 (Ed. J. Olympio), na PUC/RS. Publicou seu primeiro livro de poesia, Alvorada, em 1955 e sua obra poética ainda inclui os livros Arte de Armar (1977), Nominais (1993) e & Cone de Sombras (1995), entre outros. Já recebeu diversos prêmios literários e teve reunida toda sua obra poética no volume Hora Aberta – Poemas Reunidos. Veja a entrevista dele no Guia de Poesia e mais no Varejo Sortido e no Pesquisa & Cia.
FONTE:
TELES, Gilberto Mendonça. Hora aberta: poemas reunidos. Petrópolis: Vozes, 2002.
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