sábado, julho 21, 2012

JAMES JOYCE



Imagens do pintor romeno Theodor Pallady (1871-1956).

FRAGMENTOS DE RETRATO DO ARTISTA QUANDO JOVEM DE JAMES JOYCE


“[...] Ela havia posto a sua mão no bolso dele, onde ele estava com a sua já enfiada; e ele havia sentido quão fria, delgada e macia era a mão dela. Ela dissera que bolsos eram coisa engraçada de ter; e então, depois, sem mais aquela, tinha parado de falar e saíra a correr, rindo, pelo declive abaixo do caminho. Seu lindo cabelo se tinha derramado atrás dela como ouro ao sol. É pensando direito nas coisas que a gente as entende.

Qual misericórdia quê
Não escapas duma tunda.
Vai descendo logo as calças
E vira pra cima a bunda.

[...] começou a provar a alegria da sua solidão. [...] o olhar dela vinha direto ao seu canto, adulando-o, zombando, procurando, excitando seu coração [...] haustos da sua respiração quente voavam e subiam alegremente acima da sua cabeça encapuzada; e os seus sapatos batiam jovialmente no caminho vidrado.



[...] o coração dela dançava com os movimentos que ela fazia, como uma boia obedecendo à maré. Ele ouvia o que os olhos dela lhe diziam, fosse em vida ou em sonho, tinha escutado seus contos antes.

- Ela bem que quer que eu a agarre – pensava ele. – É por isso que veio comigo no bonde. Eu bem podia tê-la segurado quando ela subiu aqui para o meu degrau; ninguém está olhando. Poderia segurá-la e dar-lhe um beijo.

[...] Mas a pressão dos dedos dela fora mais leve e mais firme; e, de súbito, a recordação desse contato lhe atravessou o cérebro e o corpo como uma onda invisível.



Tais momentos passavam e os devastadores fogos da cobiça pulavam novamente. Versos lhe saiam dos lábios, gritos inarticulados e palavras brutais não proferidas revestiam do cérebro para forçarem passagem. O seu sangue revoltava-se. Errava para cima e para baixo, através das ruas sombrias e visguentas, espiando os revérberos das vielas e dos portais, escutando avidamente todos os sons. Lamentava-se consigo mesmo feito um animal enganado, erradio. Queria pecar com alguém da sua espécie, forçar um outro ser a pecar com ele e exultar juntos no pecado. Sentia qualquer presença mover-se irresistivelmente para ele das trevas, uma presença sutil e murmurosa como uma torrente enchendo-o todo. O seu murmúrio alcançava os seus ouvidos como o murmúrio de qualquer multidão em sono. Essa torrente difusa penetrava-lhe o ser. Suas mãos torciam-se convulsivamente e os seus dentes cerravam-se como se sofresse a agonia da penetração. Estirava as mãos na rua para segurar firme a frágil forma que desmaiava, evitando-o e incitando-o; e o grito que detivera a garganta tanto tempo saia dos seus lábios. Esse grito rompia dele como um lamento de desespero dum inferno de sofredores e morria num lamento de furiosa súplica; um grito por um iníquo abandono, um grito que não era mais do que uma obscena garatuja que houvesse lido no visguento muro dum mictório.

Tinha vagado por um labirinto de ruas estreitas e imundas. Das sórdidas vielas ouvira explosões de grosseiros tumultos e disputas de vacilantes cantores bêbedos. Prosseguia para diante sempre, impávido, perguntando se se extraviara no bairro dos judeus. Mulheres e raparigas vestidas de roupões compridos e berrantes atravessavam a rua, duma casa para outra. Estava à vontade e perfumadas. Sentiu um arrepio e seus olhos ficaram ofuscados. Os bicos de gás amarelentos erguiam-se diante de sua visão turva, contra o céu enevoado, ardendo como diante dum altar. Na frente das portas e em corredores, acesos grupos estavam reunidos como que para um culto. Ah! Estava num outro mundo; tinha acordado dum sono de séculos.



Permaneceu ainda, no meio da rua, o coração clamando contra o seu peito num tumulto. Uma mulher nova vestida com um longo roupão cor-de-rosa pôs a sua mão no braço dele para detê-lo e encará-lo. Depois disse jovialmente:

- Boa noite, Willie querido!

O quarto dela era quente e bem iluminado. Uma descomunal boneca estava sentada com as pernas afastadas na imensa poltrona ao lado da cama. Ele tentou, em vão, dizer a si mesmo que estivesse à vontade, observando-a desprender o roupão, vendo os movimentos resolutos e orgulhosos da sua perfumada cabeça.

Como ele estivesse no meio do quarto, sem falar, ela atirou-se a ele e o abraçou grave e jovialmente. Seus braços, enlaçando-0 com firmeza, prendiam-no a ela. Via o rosto dela erguer-se para ele com uma calma série, e, sentido o cálido e calmo arfar da sua respiração, todo ele rompeu em pranto histérico.



Ela passou as mãos titilantes por entre os seus cabelos, chamando-o de pequeno velhaco.

- Dá-me um beijo – disse-lhe.

Mas os lábios dele não puderam inclinar-se para beijá-la.

Queria estar preso pelos braços dela e ser acariciado devagar, devagar, bem devagar. Em seus braços sentiu que se tinha tornado subitamente forte, destemido e seguro de si próprio. Mas os lábios não queriam baixar para a beijar.

Com um inesperado movimento ela lhe virou a cabeça e grudou os lábios nos dele. Ele leu o sentido dos seus movimentos em seus olhos escancarados e erguidos. Isso era demais para ele. Fechou os olhos, apertando-se bem de encontro a ela, corpo e espírito, sem consciência de mais nada no mundo senão da sombria pressão dos lábios dela suavemente se entreabrindo. Eles lhe comprimiriam o cérebro como lhe comprimiam os lábios, tal como se fosse o veiculo de uma vaga linguagem. E entre os seus lábios e os dela sentiu uma desconhecida e tímida pressão, mais sombria do que o desmaio do pecado e mais suave do que som ou odor.



[...]

O seu pecado, que o havia feito esconder-se da vista de Deus, o havia levado para perto do refugio dos pecadores. Os olhos dela pareciam olhá-lo com doce piedade: aquela sua santidade, uma estranha luz brilhando de leve sobre a sua frágil carne, não humilhava o pecador que se aproximava dela. Se alguma vez se sentia impelido a afastar de si o pecado e a arrepender-se, o impulso que o movia era o desejo de ser seu cavalheiro. Se alguma vez a sua alma re-entrava timidamente na sua morada, depois de a aflição do seu corpo em desejo se ter aplacado, era ainda voltada para ela, cujo emblema era a estrela da manhã, claro e musical, falando do céu e infundindo paz: e sentia isso quando os nomes dela eram murmurados suavemente pelos lábios, onde, todavia, ainda se arrastavam sórdidas e vergonhosas palavras e até o sabor mesmo dum beijo lascivo.



[...] Também estranhara quando sentira pela primeira vez em seus dedos tremulos o fragil tecido duma meia de mulher, nada retendo de tudo quanto lia a não ser aquilo que lhe parecia eco ou uma profecia do seu proprio modo de ver e que o fosse apenas por entre frases suavemente proferidas ou dentro de tecidos róseos e tenros, sendo só assim que ousava conceber a alma ou o corpo de uma mulher movendo-se harmoniosamente na vida.



[...]

Uma rapariga apareceu diante dele no meio da correnteza; sozinha e quita, contemplando o mar. Era como se magicamente tivesse sido transformada na semelhança mesma duma estranha e linda ave marinha. Suas longas pernas, esguias e nuas, eram delicadas como as dum grou, e eram claras até onde a esmeralda da água do mar as rodeava, marcando a sua carne. As coxas, rijas, duma coloração suave como a do marfim, estavam à mostra quase até os quadris, onde as alvas franjas do seu calção eram como penugem de alva e macia pluma. A orla azul-clara do seu saiote ajustava-se garridamente em torno da sua cintura, abotoando-se atrás. O peito era o deu um pássaro macio e leve, tão leve e macio como o de um pombo de penas negras. Mas os seus cabelos compridos era de menina; e de garota, tocada pelo deslumbramento duma beleza mortal, era a sua face [...] Subitamente se afastou dela e seguiu através da praia. Todo o seu rosto estava afogueado; todo o seu corpo abrasado; os seus membros tremiam. Caminhou, caminhou, caminhou, a passos largos, até longe, por sobre a praia, cantando selvagemente para o mar, gritando para saudar o advento da vida que tinha gritado para ele.



[...] Não demorou muito, uma mulher anda moça abriu a porta trazendo-me uma enorme caneca de leite. Estava meio despida, como se estivesse para se deitar na hora em que bati; tinha os cabelos caídos, e pensei comigo ante aquele rosto e certa expressão dos seus olhos que devia trazer um filho, entendes? Prendeu-me ali na porta a conversar algum tempo e eu achei aquilo extravagante, visto como os seus ombros e o seu peito estavam descobertos. Perguntou-me se eu estava cansado e se gostaria de passar a noite ali. Disse-me que estava inteiramente sozinha na casa e que o marido tinha ida aquela manhã para Queenstown a acompanha a irmã. E todo o tempo em que esteve a falar, Stevie, tinha os olhos fixos na minha cara! E estava tão perto de mim que eu podia ouvir sua respiração. Quando lhe devolvi o canecão, acabou por segurar a minha mão, puxando-me para a soleira, e disse assim: Entre e passe a noite aqui. Não tem motivo para ficar assustado. Não tem ninguém a não ser nós. [...] e a figura da mulher desse caso permanecia refletida no rosto das outras mulheres do campo que tinha visto nas soleiras, em Clane, quando os carros do colégio passavam por lá, como tipos da raça dela e da sua também, uma alma de morcego acordando para a consciência de si mesma na treva, na solidão e no mistério e, através dos olhos, da voz e dos gestos  duma mulher sem artifícios, chamando um estranho para o seu leito.



Os gregos, os turcos, os chineses, os coptas, os hotentotes – disse Stephen -, todos eles admiram um tipo diferente de beleza feminina. Isso parece uma confusão da qual não podemos escapar. Vejo, no entanto, duas saídas. Uma é a seguinte hipótese: que todas as qualidades físicas admiradas pelos homens nas mulheres estão em conexão direta com as múltiplas funções das mulheres para a propagação da espécie. [...] o mesmo objeto possa não ser bonito para toda gente, toda gente pode admirar um objeto bonito.



[...]

Um fulgor de desejo inflamou outra vez sua alma, ascendendo e enchendo todo o seu corpo. Consciente do desejo dele, estaria ela acordando dum odoroso sonho, ela, a tentadora do seu vilancete? Os seus olhos, negros e com uma expressão de langor, estariam se abrindo para os seus olhos. A nudez dela clamaria por ele, radiante, como aqueles seus membros odorosos e pródigos, envolvendo-o como uma cintilante nuvem, nuvem de vapor, ou como águas cincunfluentes no espaço, as letras liquidas do poema, símbolos do elemento do mistério, manariam por sobre o seu cérebro.



JAMES JOYCEO escritor irlandês expatriado James Augustine Aloysius Joyce (1882-1941), é considerado um dos mais importantes autores do século XX. Ele é autor de obras, tais como Dublinenses (1914), Retrato do artista quando jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939). Participou do Modernismo e do Imagismo. Veja mais no Tataritaritatá.