Imagem: Nude (1936) do fotografo
americano Edward Weston (1886-1958)
UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS
PRAZERES DE CLARICE LISPECTOR
E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível
dos seres vivos.
[...]
Ela tivesse a intenção de um dia
dar-se, pois sabia que teria de dar a alguém o que ela era, senão o que faria
de si?
[...]
E era isso o que estava lhe faltando: o
mar por dentro como o líquido espesso de um homem.
[...]
Às vezes de noite acordava em
sobressalto sentindo a falta de Ulisses, como se tivesse alguma vez dormido com
ele. E nãol conseguia readormecer porque o desejo de ser possuída por ele vinha
forte demais. [...] sabia no entanto que o fato de desejá-lo tão intensamente
não queria dizer ainda que ela avançara. Pois antes também desejava os seus
amantes e não se ligara a nenhum deles.
[...]
Então, como tudo ia acabar, em
imaginação vívida, pegou a mão livre do homem, e em imaginação ainda, ao
prender essa mão entre as suas, ele doce ardia, ardia, flamejava.
[...]
E por enquanto ela não tinha nada a lhe
dar, senão o próprio corpo. Não, nem o próprio corpo: pois com os amantes que tivera, ela como que apenas
emprestava o seu corpo a si própria para o prazer, era só isso, e mais nada.
[...]
Foi nesse estado sonho-deslumbre que
ela sonhou vendo que a fruta do mundo era dela. Ou se não era, que acabara de
tocá-lo. Era uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço
escuro, brilhando de uma quase luz no espaço escuro. E que no ar mesmo ela
encostava sua boca na fruta e conseguira mordê-la. [...] Eles se haviam possuído
além do que parecia ser possível e permitido, e no entanto ele e ela estavam
inteiros. A fruta estava inteira, sim, embora dentro da boca sentisse como
coisa viva a comida de terra. Era terra santa porque era a única em que um ser
humano podia ao amar dizer: eu sou tua e tu és meu, e nós é um.
[...]
Ele se interrompeu beijando
demoradamente sua carne perfimada. E ela de novo caiu na vertigem que a tomou,
e era de novo feliz como um ser pode morrer de felicidade. E de novo pela
quarta vez eles se amaram.
[...]
Foi um sobressalto que ela sentiu a mão
dele pousar no seu ventre. Não havia nesse momento sensualidade entre ambos. Embora
ela estivesse cheia de maravilhas, como cheia de estrelas. Ela estendeu então a
própria mão e tocou-lhe o sexo que logo se transformou.
LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem, ou
o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
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