terça-feira, agosto 11, 2009
BENJAMIM PÉRET
Imagem: Nevermore, 1897, do pintor do Pós-Impressionismo francês, Paul Gauguin (1848-1903)
BENJAMIM PÉRET (1899-1959)
AMOR SUBLIME
Dois tipos de mulheres parecem-me aptos a viver o amor sublime, porque encarnam dois aspectos da feminilidade, cujos traços são nitidamente discerníveis, o que as isola de todos os tipos possíveis: a mulher-criança e a feiticeira, a primeira figurando a expressão otimista do amor e a segunda, sua face pessimista.
Suas personalidades, de contornos perfeitamente nítidos, opõem-nas unicamente a homens cuja virilidade adquiriu características distintivas igualmente precisas.
(...)
A mulher-criança suscita o amor do homem totalmente viril, pois ela o completa traço a traço. Este amor a revela a si mesma, projetando-a num mundo maravilhoso, e por isso se abandona inteiramente a ele.
Ela figura a vida que desperta em pleno dia, a primavera explodindo de flores e cantos. Instrumento ideal do amor sublime que soube vencer todos os obstáculos, apresentando-se como única capaz de exaltar seu amante, pois o amor a deslumbrou.
Ela é levada pelo seu coração, sem esforço e sem desconfiança, “ao outro lado do espelho”.
Esperava o amor como o broto aguarda o sol, e o acolhe como um presente inesperado, mais suntuoso do que ela poderia ter sonhado.
É portadora do amor sublime em potencial, mas é preciso que ele lhe seja revelado. É toda felicidade, em qualquer condição que seu amor a coloque, pois ele ilumina sua vida: ela é o amor salvador”.
(...)
Opostamente, a feiticeira é a mulher fatal que desencadeia a paixão, não para exaltar a vida, mas para se lançar à catástrofe e aí conduzir seu amante.
Ela só é amor contido aspirando a explodir. Muitas vezes arrebata o homem de sua escolha. Possui, portanto, certos traços viris, ao contrário da mulher-criança.
É este duplo aspecto que fascina tantos homens. Ela tira seu poder do eco recebido por seu apelo, endereçado ao elemento feminino que jaz em todo homem.
(...) Se a mulher-criança oferece um objetivo imediato às relações do homem e da mulher, a feiticeira mostra a impossibilidade de atingir este objetivo nas condições atuais. Ao mesmo tempo que desdobra os maiores esforços para que triunfe seu amor, age como se pensasse que ele não era destinado a esse mundo, mas a um outro além da morte.
UMA MANHÃ
Há gritos que não acabam mais
berros de terra agitada como um leque
desmantelado
por topeiras em conserva
por soluços de tábuas que alguém estripa
longos como uma locomotiva que vai nascer
por convulsões de árvores revoltadas que não querem
deixar subir a seiva
tanto como o metrô não aceita transportar avestruzes
nos seus túneis de barba mal-escanhoada
há gritos
aranhas de vitríolo que engulo sem perceber
perto desse rio gasto saído de um bocal de cachimbo
que não passa de um longo focinho
um pouco quente
um pouco mais resmungão que um caldeirão quase
vazio
este no que tu não vês como não vês a poeira de uma
hóstia
que o vento misturou
com a poeira do vigário semelhante ao sulfato de cobre
e à da igreja mais torta que um velho
saca-rolha
pois não estás mais aí do que não estou aí sem ti
e com isso o mundo fica todo descabelado
TEMPO DIFERENTE
O sol da minha cabeça é de todas as cores
É ele que ilumina as casas
de palha
onde vivem os senhores saídos das crateras
e as belas mulheres que em cada dia nascem
e em cada tarde morrem
como os mosquitos.
Mosquito de todas as cores
que vens tu fazer aqui?
O sol este sol é para cães
e o calor sacode as montanhas
enquanto as montanhas nadam
sobre um mar pleno de luzes
onde o calor e o peso da vida
não existem
- onde eu não meteria nem a ponta do meu pé.
A DOENÇA IMAGINÁRIA
Eu sou o cabelo de chumbo
que viaja de astro em astro
que se tornará em cometa
e num ano e num dia te destruirá.
Mas por enquanto não há dias nem anos
existe apenas uma planta viçosa
de que desejas ser semelhante
Para ser irmão das plantas
é preciso crescer na vida
ser sólido quando na morte
Ora eu sou somente imóvel
e mudo como um planeta
Vou banhando os pés nas nuvens
que como bocas em volta
me condenam a ficar
entre os que parados estão
e que as plantas desesperam
No entanto um dia
os líquidos revoltados
lançarão para as nuvens
armas assassinas
manejadas pelas mulheres azuis
como os olhos das filhas do norte
E esse dia será dentro de um ano e um dia.
QUANDO ENVELHECE O DIABO TORNA-SE EREMITA
Luís Filipe é alto para a sua idade
Dá-lhe alguns cêntimos
O seu chapéu será demasiado pequeno
Dá-lhe duas gravatas
Mentirá todos os dias
Dá-lhe outro cachimbo
A sua mãe chorará
Dá-lhe um par de luvas
Perderá os seus sapatos
Dá-lhe café
Terá lâmpadas
Dá-lhe um corpete
Levará um colar
Dá-lhe suspensórios
Tratará de ratos
Dá-lhe uma pá
Subirá ao avião
Dá-lhe sopa
Fará uma estátua
Dá-lhe uns cordões
Comerá groselha
O senhor Luís Filipe
Que vive de pílulas e de pastas
Come a sua mãe
E perde o tempo caminhando.
AS FERRUGENS ENGAIOLADAS
Ah! as mocinhas que erguem o vestido
para se esfregarem na moita
ou então nos museus
atrás de Apolos de gesso
enquanto a mãe delas compara a vara da estátua
com a do marido
e suspira
Ah! se meu marido fosse parecido
Um dia a mãe voltará sozinha ao museu
mas a filha dela fugirá pelo outro lado
vara na mão
e a mãe desolada
roubará de uma porta
a maçaneta de cristal
ESCUTA
Se me abrigasses como um besouro num armário
eriçado de prímulas pintadas pelos teus olhos de viagem de longo curso
segunda terça-feira etc seriam apenas uma mosca
numa praça cercada de palácios em ruínas
onde medraria uma imensa vegetação de coral
e de chailes bordados
onde se veriam
árvores abatidas que obliquamente se vão embora
até se confundirem com os bancos dos jardins
onde eu dormia à espera que viesses
como uma floresta espera a passagem dum cometa para que se faça luz
nos seus maciços que gemem como uma lareira
a chamar pela acha que sempre desejou desde a hora em que bocejou
como uma pedreira abandonada
e treparíamos qual escadaria por uma torre acima
para nos vermos desaparecer ao longe
como uma mesa levada pela cheia
PISCADA
Bandos de papagaios atravessam minha cabeça
Quando te vejo de perfil
E o céu de banha estria-se de relâmpagos azuis
Que traçam teu nome em todos os sentidos
Rosa penteada de tribo negra perdida numa escada
Onde os seios agudos das mulheres olham pelos olhos dos homens
Hoje eu olho pelos teus cabelos
Rosa de opala da manhã
E desperto pelos teus olhos
Rosa de armadura
E penso pelos teus seios de explosão
Rosa de lagoa esverdeada pelas rãs
E durmo no teu umbigo de mar Caspio
Rosa de rosa do mato durante a greve geral
E me perco entre teus ombros de via lactea fecundada por cometas
Rosa de jasmim na noite da lavagem dos linhos
Rosa de casa assombrada
Rosa de floresta negra inundada de seios azuis e verdes
Rosa de papagaio-de-papel sobre um terreno baldio onde brigam crianças
Rosa de fumaça de charuto
Rosa de espuma de mar feita cristal
Rosa
Disse o nosso general
com o dedo no buraco do cu
O inimigo
é pr’ali marchar
Era pela pátria
Partimos
com o dedo no buraco do cu
A pátria encontrámo-la nós
com o dedo no buraco do cu
Disse-nos a marafona
com o dedo no buraco do cu
Morram ou
salvem-me
com o dedo no buraco do cu
Em seguida encontrámos o kaiser
com o dedo no buraco do cu
Hindenburgo Reischffen Bismark
com o dedo no buraco do cu
o grã-duque X Abdul-Amid Sarajevo
com o dedo no buraco do cu
mãos cortadas
com o dedo no buraco do cu
Deram-nos cabo das canelas
com o dedo no buraco do cu
devoraram-nos o estômago
com o dedo no buraco do cu
furaram-nos os colhões com fósforos
com o dedo no buraco do cu
e depois muito docemente
morremos
com o dedo no buraco do cu
Rezai por nós
com o dedo no buraco do cu
BENJAMIM PÉRET (1899-1959) - Benjamin Péret nasceu na França em 1899. Aderiu ao surrealismo na década de 20, após breve militância no movimento Dada, ao mesmo tempo que se associava ao Partido Comunista com o qual veio a romper mais tarde. Em 1924 dirigiu, com Pierre Naville, La Revolución Surrealiste e publicou os poemas D’Immortale Maladie. Viajou para o Brasil em 1929, militando no grupo trotskista local. Casado com a cantora brasileira Elsie Houston, foi deportado do Brasil em 1931. Data dessa época a destruição, pela polícia getulista, do livro O Almirante Negro. Entre 1936 e 1937 lutou em Espanha contra o franquismo, vindo posteriormente a refugiar-se no México. Já na década de 50, regressou ao Brasil. Escreveu sobre culturas indígenas e produziu uma obra poética e ensaística singular, reunida em vários volumes após a sua morte em 1959.
FONTE:
ABREU, Maria Leonor Lourenço. Amor e humor na poesia de Benjamento Péret. Sitientibus. Feira de Santana, n; 10 p. 65-78, jul/dez, 1992.
PAES, José Paulo. Poesia erótica em tradução. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PÉRET, Benjamin. Amor sublime: ensaio e poesia. Organização: Jean Puyade. Tradução: Sérgio Lima, Pierre Clemens. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PUYADE, Jean. Benjamin Péret: um surrealista no Brasil (1929-1931). Oficina Cinema-História. O olho da história. www.oolhodahistoria.ufba.br número 8.
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